quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

de um segundo

"(...) é tão bom saber que tem essas pessoas nas nossas vidas que só esperam que sejamos felizes porque acham que a gente merece ser feliz."

li isso há trinta segundos atrás (http://bettypurpurina.wordpress.com/ postado em 15/12/2010) e não pude evitar que, de alguma forma, também me tocasse de uma maneira inesperada e me fizesse pensar... Gosto da maneira incomum como relações interpessoais conseguem me sensibilizar, observar e perceber essa cadeia de vínculos e afetos que vai se formando e como o que você faz e diz (às vezes as menores besteiras) acaba marcando profundamente quem está ao seu redor, mesmo que não tenha sido essa a intenção imediata. Sei  lá, talvez o caso seja que eu dê valor agora, como nunca antes, (ou perceba de uma nova maneira) às pessoas que acreditam que você é mais do que você mesmo acredita ser e acabam por fazer você querer ser assim. Somos nós, no fim nos amparando em outros corações...

E digo mais: muito melhor do que ter pessoas dessas na sua vida é quando é você que encontra alguém que você quer que seja feliz, porque você acredita nela e sabe que merece, simplesmente por ser quem é (numa certeza egoísta e arbitrária). E tentar fazer esse alguém feliz acaba sendo o mínimo que se pode fazer, por você e por ela (ainda que não se acredite nessa tal felicidade). É... acho que é mais ou menos o que eu sinto, viu?

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

"A literatura nos dá sempre algo que a vida não nos acaba de dar. E isso se deve à condição humana: fomos feito de tal maneira que vivemos só uma vida, mas temos uma imaginação, uns desejos, uns apetite que nos faz querer não uma, senão mil vidas."

(Mario Vargas Llosa)

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

nota

ela não sabe, mas ao abrir seus dois braços curtos (brancos) - ao oferecê-los para mim num abraço forte, vigoroso - consegue alcançar a lua.

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simples assim...

"Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.

Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?"

(...)

"No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amastes antes.
Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor."

(Carlos Drummond de Andrade)

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

termo

venha sem aviso
de repente
invisível

e me leve o mais
rapidamente
possível

(arnaldo antunes. n.d.a.)
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...assim, sem meio termo

porque quando eu abro esse livro [essa beira de abismo] é teu cheiro que eu sinto...
e eu ainda tenho uma história inteira pra ler [na tua letra cursiva].

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

"deveríamos ser tolerantes com qualquer tipo de estupidez, falha e vício, pensando que o que está diante de nós é tão-somente nossa própria estupidez falha e vício, já que esses são erros da humanidade, na qual também nos incluímos, e consequentemente temos também todas as falhas, até mesmo aquelas que nos causam indignação, apenas porque, neste momento, não as manifestamos."

(A. Schopenhauer)
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"Sou humano, e nada que é humano me é estranho"

"ei, amigo, aonde vai? não sabe que estamos todos no mesmo barco e que ele afunda lenta e irremediavelmente?"

[mas isso é tão difícil de colocar em prática, não é mesmo? a primeira coisa que fazemos é dividir o mundo inteiro em nós e os outros, certos e errados, inocentes e culpados, bons e maus. acho revigorante a ideia de que essa dualidade está em cada um de nós. se há algo para mudarmos no mundo deve ser o que há por trás dos olhos.]

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

acho que ainda não me acostumei com seu sorriso.
poderia ficar horas a fio só a olhá-lo fixamente e sentir essa meninice inexplicável brincar em mim.
o frio na barriga que sobe até garganta e se transfigura num sorriso-resposta tolo.
estranho pensar que exatamente agora é pra mim que ele se exibe, doce, radiante.
o sorriso que nasce nos olhos, escorre pelas bochechas e morre (renasce) nos lábios, num fluxo infinito... esforço-me pra decorar cada um dos dentes que você me mostra.
atônito, comovido, tento em vão captar a essência íntima (a poesia) que transborda da tua boca e escorre pela minha.
(tento me guardar em mim, mas você sabe, sempre, exatamente onde estou.)
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...

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

sobre os três dias que virão...

"E só de te ver eu penso em trocar
A minha TV num jeito de te levar
A qualquer lugar que você queira
E ir onde o vento for
Que pra nós dois
Sair de casa já é se aventurar."

(Último Romance)
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Por que a gente não troca toda essa burocracia (essa tv...) por duas (ou três, sei lá) noites no deserto?

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Com seus pássaros
(ou a lembrança dos seus pássaros)
Com seus filhos
(ou a lembrança dos seus filhos)
Com seu povo
(ou a lembrança de seu povo)
Todos emigram...

De uma pátria à outra do templo
De uma praia à outra do atlântico
De uma serra à outra das cordilheiras
Todos emigram...

Para o corpo de berenice
Ou o coração wall street
Para o último tempo
Ou a primeira dose de tóxico
Para dentro de si
Ou para todos
Para dentro de si
Ou para todos
Pra sempre
Todos emigram...

(Cordel do Fogo Encantado)
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lembrança
lembrança
lembrança
do corpo...
do coração...
do último tempo
e da primeira dose

hei de partir
para dentro
(ou para todos)


"Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir:
Hei de aprender com ele
A partir de uma vez
- Sem medo,
Sem remorso,
Sem saudade."

(M. Bandeira)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

algumas linhas sobre "tropa de elite 2"

assisti novamente ao filme esse sábado (merecia ser revisto) e talvez tenha agora um pouco mais de clareza sobre as impressões que fiquei dele. desde que soube que tropa de elite teria continuação fiquei com muitas expectativas e com a proximidade da estreia a ansiedade só aumentou. sou muito fã do primeiro, por motivos semelhantes pelos quais adorei sua continuação.

primeiro de tudo que o filme é fortíssimo, tem uma trama muito bem estruturada que prende do início ao fim (pelo menos não lembro de ouvir opiniões ao contrário) e que de certa forma incomoda. a partir do ponto de vista do coronel nascimento, nos vemos afundando num mar de lama do qual é quase impossível sair. o "sistema" vai engolindo a tudo e a todos, dando a sensação de que não há muita escapatória.

se no primeiro as atenções se voltavam para a violência em sua expressão mais direta e a dinâmica microssocial que ela supunha (a tensa relação entre o bope, a policia, os traficantes e segmentos da sociedade de modo geral), a sequência nos traz um cenário mais amplo, que faz a violência das ruas desembocar no gabinete do governador (e por que não lá em brasília, conforme sugere uma das últimas cenas?) mostrando o quanto tal situação é movida por interesses políticos. ou seja, nós é exposto de maneira clara o quanto as ações de aparelhos do Estado (como o Bope ou o serviço de inteligência, nos exemplos do filme) são movidas por politicagem e não necessariamente por um "sentimento de dever". achei interessante essa noção (óbvia, mas nem sempre escancarada) de que toda bala tem por trás de si um histórico, um tenso jogo de interesses e de luta por poder. a indústria de violência e da corrupção tem raízes muito mais profundas do que pode-se supor num primeiro momento.

em ambos os filmes gosto da maneira como a questão da violência (e seus desdobramentos) é tratada. nunca de maneira superficial ou maniqueísta. não há nada simples, não há o certo e o errado indubitável. as situações, conforme se apresentam, são justificáveis por alguns e condenáveis por outros. o próprio "herói" do filme tem seus excessos e seus desvios de caráter. ele não está lá para ser celebrado como salvador da pátria. ele próprio se angustia e cria problemas para si nas relações com as pessoas que gosta. apesar de extramente cativante, é um personagem complexo, que nos expõe de maneira clara que ele é mais um dentro daquele intenso jogo, da relação quase caótica entre diversos grupos. ele próprio reconhece que muitas de suas ações não são exatamente elogiáveis ou que, no mínimo trazem desdobramente problemáticos. é impossível legitimarmos e defendermos todas as ações ou posições ideológicas do protagonista ou da "tropa de elite". ambos estão inserido num contexto do qual ninguém tem uma visão ampla e isenta. cada um está ali pra defender o seu.  é um retrato um tanto quanto cru e cruel, mas, na minha opinião, muito bem feito, na medida em que nos instiga a pensar de maneira complexa no todo.

bom, desnecessário falar que tecnicamente o filme é muito bem feito e não é à toa que tem levado tantas pessoas ao cinema.é um bom filme de ação (mas espero que esse seja só um dos muitos aspectos a serem levados em conta ao se assistí-lo). além disso merece ser sublinhada a excelente atuação do wagner moura no papel de um coronel nascimento treze anos mais velho, cansado e sob constante tensão.

sábado, 6 de novembro de 2010

do momento

o momento agora, meu filho, é de calma extrema (respire... respire...).
a profunda calma de sentí-lo em toda a sua leveza (invente-a!).
a serenidade desentranhada com força, deseperadamente, do insólito...
deixar-se estar descrente e sereno... cinicamente sereno (de uma serenidade displicente)
esperar pelo processo de depuração, sem esperar mais nada (não há o que esperar)


é o momento meu filho...
de ser mínimo, mas resoluto. estar atento e manter-se frio (a verdade agridoce...).
é a véspera do mistério e da revelação, a véspera de qualquer outra coisa (evite sorrisos).
faça todas (todas!) as perguntas do mundo, mas não (e aqui cabe a súplica de um pai enternecido),
de forma alguma espere respostas. não é o momento de respostas (há lodo nos lábios),
não creia, não ore, não peça nada, desconfie do que se supõe ver (há lodo nos olhos),
aproxime-se lentamente, meça seus passos, flutue (há lodo no chão e em todo lugar).


é o momento meu filho...
de beber dessa garrafa, destampada, em cima da mesa (um grande e vigoroso gole)
é tempo de contrição, de reservas, manter-se sabiamente ignorante, silenciar deus e o diabo
esperar e duvidar do exato segundo (ainda por vir) de confluência dos opostos (caótica, natural)
desejar intensamente, com todos os dedos da mão, com toda a força da alma (duvide da alma!!!)
manter-se inerte, irredutível. ter a calma (novamente ela) de violentar os próprios sonhos.
há todo um corpo, de sensações, de sentimentos. fuja dele, busque-o furiosamente. respire...


meu filho (tolo como o pai), pode ser que amanhã não, mas hoje deve-se manter a janela fechada (espie com cautela).

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“Eu não devia te dizer
mas essa lua,
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.” 


(Carlos Drummond de Andrade)


"e lá vai deus sem sequer saber de nós. saibamos pois, estamos sós."

sexta-feira, 5 de novembro de 2010


(...)

- você, sua imagem me assusta...

- haha! não, você é que tem medo de tudo (até de sentir medo)! pensa cinquenta vezes antes de dar o mínimo passo, supondo que isso é viver bem, ser cauteloso. sei que, fosse outro e não eu, o medo seria o mesmo.

- ...

- infelizmente o teu cérebro, a tua celebrada consciência (conscienciosidade) não vai te salvar... o máximo que você faz é sofrer por antecipação e deixar de aproveitar a parte boa que lhe cabe. por que você nunca pensa que o copo está meio cheio? por que esse pessimismo tão entranhado?

- acho que é algum tipo de doença da alma ou da mente, mas foda-se. quem você pensa que é pra vir me dizer essas coisas!? eu não ajo assim porque quero! sou eu que passo noites em claro com a cabeça latejando em angústias! é o meu e não o seu peito que tem que aguentar as marteladas de um coração que se desfaz com o vento!

- hahaha, você é um sarro mesmo! pensa mesmo que é só o seu? acha que, por acaso, aguenta em si toda a sensibilidade do mundo? não, meu caro. somos todos companheiros de infortúnio. todos nós carregamos o peso de uma vida inteira. nesta cidade há 10 milhões de solitários e insatisfeitos. a diferença é que alguns, como você, pensam que nisso como um grande problema.

- não sei, não sei... acho que tô velho pra essas coisas, não sei por quanto tempo ainda aguento. talvez eu só queira um lugar tranquilo pra descansar... um par de braços abertos, meia dúzia de palavras bonitas. é difícil mergulhar de cabeça no espaço vazio, sabendo que não há pára-quedas e nem perspectivas.

- pára-quedas? por quê!? pra quê!? a própria queda é o objetivo último da vida. quando chegar no final vamos ver o tamanho do buraco que você fez no chão e aí sim saberemos se a sua existência (o teu pulo) valeu a pena... não meu filho (meu irmão, meu pai, minha danação), não queira sair ileso; sua natureza, sua realidade, sua metafísica é a (auto)destruição. ótimo se você é capaz de esfarelar a porra desse seu coração, espalhá-lo por aí pelo mundo, dá-lo a quem é de direito... ainda que doa mais do que qualquer coisa. a cada um a parte que lhe cabe, um choro em silêncio e só. será que você consegue rir disso?

- cala a boca. odeio esse seu ar de superioridade. você é tão cretino quanto eu...

- pode ser... chame o garçom.

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e não é que eu não valorize os poucos indícios escondidos nas tuas aspas e que colho com tanto custo nos teus olhos de nuvem. não é que eu não dê importância ao que foi dito e ao que ficou subentendido...
acho que o que tenho é só uma doença que vem de vez em quando, mas depois vai (e me deixa vazio, mas contínuo).

"Já não me entendo mais. Meu subconsciente
Me serve angústia em vez de fantasia,

Medos em vez de imagens. E em sombria
Pena se faz passado o meu presente."


(M. Bandeira)

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

raios de sol em dias verde-claros

o que se deu então foi uma terrível queda-de-braço entre nós. e se eu digo "nós", distinguindo um "você" e um "eu", devo esclarecer que é mera formalidade empírica, por estarmos opostos, frente a frente. na verdade a batalha foi entre uma pequena parte de mim, a mais franzina, que ainda insistia em se manter em combate e você (total, indivísivel, de aço) e também contra os meus pedaços, que estavam contra mim, ou simplesmente se eximiam de qualquer posicionamento.

esse é um ponto, aliás, que merece maior atenção. fragmentos da minha "individualidade" (nesse momento já inteiramente dividida) que por motivações diversas (ou ausência delas) estavam em conflito. talvez por sadismo, um perverso gosto por incitar sensações dolorosas e desnorteantes. Ou então por complacência, por querer me desencorajar a tomar atitudes que, no fim, seriam de fato a perdição. Arrisco ainda uma última motivação, que é a da derrota por antecipação, o sentimento já arraigado por completo de que a derrota é certa e, portanto, não há mais o que se fazer. há também aqueles, em mim, que ficam em cima do muro; respondem a tudo com hesitação, o peso de reticências que prostam. pecam pela inércia, pelo sangue amarelo e aguado que lhe (me) corre às veias, pela ausência de pulsão, que constroi e destroi, mas que ainda assim levam a algum lugar. enfim, tal é o enorme esforço que devo fazer para dar o mínimo passo. e que fique bem claro, não é minha intenção justificar eventuais derrotas, mas sim descrever melhor os termos em que se dava esse embate (e os outros).

sustentar-me resoluto em nosso desafio, era aceitar a enorme disparidade de forças estabelecida. era estar em desvantagem logo de saída, pelo simples fato de ser eu. porém, o que devo (e quero) ressaltar é que, ciente de tudo isso, do terror que era estar ali olhando diretamente nos seus olhos de abismo, não movi um dedo. meu braço não tinha (não tem) a mesma força que o seu, que era feito de nuvens, sons, cores e cheiros (a mesma matéria dura com a qual erguem-se edifícios) e seria loucura insistir no desafio. mas continuei por instinto e orgulho. o instinto de auto-preservação que tanto me falta na maioria das vezes, mas que dessa vez aflorava tímido, mas resoluto. e o orgulho, força que de fato me mantia, me impedia de dar o braço a torcer. não assim tão fácil. o mínimo que poderia fazer é manter-me resoluto, criar-lhe tantas dificuldades em ganhar de mim que ainda seria lembrado como um bom adversário. sim, esse é meu braço. por debaixo da minha pele, correndo em minha veias, há (também) orgulho. substância que dá alguma força, que mantém o brilho fraco que há em meus olhos e o sorriso quase morto esculpido na minha cara.

(...)
você acreditaria se eu confessasse que falo de raios de sol em dias verde-claro?

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"você é louco!? por que faz uma coisa dessas?"

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

vá ser triste (um pouco pelo menos)! entre um cigarro e outro, preste atenção no gosto amargo que fica na boca (tua bile) e te faz sentir remorso. prova cabal de que há vida, ainda que não saiba exatamente o que fazer com ela...

por que não se retira por um momento? nem todas as sextas-feiras têm que ser iguais... tem dia que a bebida simplesmente não desce e a secura na garganta atordoa. aceite esta pausa para o humano arrependimento.

a turba lá fora canta alto, festeja a morte próxima e o silêncio vindouro. mas você não consegue sair de casa, porque a casa está em você (mas ainda assim sente-se um estrangeiro).
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"Quem foi que te ensinou a rezar?
Que santo vai brigar por você?
Que povo aprova o que você fez?
Devolve aquela minha tv, que eu vou de vez,

Não há porque chorar por um amor que já morreu,
Deixa pra lá, eu vou, adeus.
Meu coração já se cansou de falsidade"

(santa chuva)

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Dialética


É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz

Mas acontece que eu sou triste...

(Vinícius de Moraes)
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poeta. vagabundo. vinícius.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

bela bela
mais que bela
mas como era o nome dela?
Não era Helena nem Vera
nem Nara nem Gabriela
nem Tereza nem Maria
Seu nome seu nome era...
Perdeu-se na carne fria
perdeu-se na confusão de tanta noite e tanto dia
perdeu-se na profusão das coisas acontecidas
constelações de alfabeto
noites escritas a giz
pastilhas de aniversário
domingos de futebol
enterros corsos comícios
roleta bilhar baralho
mudou de cara e cabelos mudou de olhos e risos mudou de casa
e de tempo: mas está comigo está perdido comigo
teu nome
em alguma gaveta

(Ferreira Gullar)
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só não consigo me lembrar onde...

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

uma canção

- ela segurou na minha mão e falou assim no meu ouvido: "por que a gente não vai lá pra fora, ver o sol nascer? por que a gente não pega aquela rua e vai por ela até o fim. onde ela acaba eu não sei, mas eu pago pra ver a sua cara de surpresa".

- e surpresa maior seria dar de cara com um abismo! e surpresa maior seria ter vontade de pular!

- ...bolhas multicoloridas dançavam no meu copo. havia um canção solta no ar. ela era minha aventura, o seu corpo um delírio. e o seu abraço... o seu abraço era uma facada.

- e eu senti a lâmina fria no meu peito quente!!! (e eu estranhei quando tive vontade de sorrir...).
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sobre encontros inesperados (mas que sabíamos que aconteceriam)
sobre comportamentos desesperados (mas que nos renovam)

terça-feira, 28 de setembro de 2010

não quero morrer não quero
apodrecer no poema
que o cadáver de minhas tardes
não venha feder em tua manhã feliz
e o lume
que tua boca acenda acaso das palavras
- ainda que nascido da morte -
some-se
aos outros fogos do dia
aos barulhos da casa e da avenida
no presente veloz

(Arte Poética/ Ferreira Gullar)

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

I.

(...)

- hahahaha, e sabe o que ela me respondeu?: "eu não tenho cabelos vermelhos e o meu vestido não é amarelo. eu sou só uma menina invisível, deitada na grama invisível que a moça que não sabia desenhar, não desenhou".

- realmente... se eu bem me lembro acho que o cabelo é amarelo e o vestido vermelho (e os olhos são de assombração!). mas que importa? estamos todos num filme em preto e branco mesmo. 

- é, foda-se...

(e a conversa continou, mas eu desci antes do ponto final)

II.

"eu não tenho cabelos amarelos e o meu vestido não é invisível. eu sou só uma menina amarela, deitada na grama vermelha que a moça que não sabia desenhar, não desenhou."

"eu não tenho cabelos de grama e o meu vestido não é de moça. eu sou só um desenho deitado, amarelo no vermelho impossível que a moça invisível não desenhou."

"eu não tenho cabelo, nem vestido (nem grama, nem cor). sou só uma menina deitada no nada da moça inventada."


[é tudo sobre você
                                (- ela.
                                  - eu?
                                  - a outra.
                                  - nós todos.
                                  - ninguém.
                                  - enfim, basta.)]

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trecho em negrito roubado impiedosamente daqui:

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

teu corpo

você não sabe, não se deu conta ainda, mas deixei marcas por todo o teu corpo. furiosamente quis tê-lo (inteiro!) para mim, roubá-lo e no desespero de quem se afoga me derramei exagerado sobre ele. em minha insanidade tentei devorá-lo completamente; torná-lo meu abrigo, na fuga vã e desesperada do vazio que me ameaçava e que era eu próprio. sim, tentei habitá-lo, torná-lo minha parte mais segura. receptáculo de meus delírios e da minha descrença.

marcas indeléveis... mãos apertando muito as suas coxas e suas nádegas. minha saliva. o caminho percorrido por minha língua, da sua orelha até seu ombro. a marca dos meus dentes em seus dois peitos. meus lábios violentando os teus. o suspiro desentranhado (lívido, agressivo) entre os dentes.... e eu me liquefazia, sôfrego e extasiado na tua pele.

isso nunca se apagará... esfregue a sua pele o quanto quiser. peça para que façam igual, que façam melhor! haverá sempre um pouco de mim (da minha loucura) em você.

Ituverava
16/07
__________________

e injetar cada pedaço do teu corpo em cada pedaço do meu corpo.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

seis horas da noite na cidade fria

seis horas da noite na cidade fria
todos como eu, nenhuma diferença,
tantos corpos, sapatos e guarda-chuvas
(mas não choveu hoje, nem choverá),
nenhuma alegria...

meus dois pés fincados sobre a capital
séculos de história me sufocam
ouço os fantasmas sussurrando
tudo é asfalto e remorso
e o que aquece é o motor à combustão.

nas minhas costas o peso do céu,
a herança que nos foi legada,
essa vida por deus cuspida,
a morte que nos será cobrada
ao dobrarmos a esquina

[ - mas não fui eu!
quando cá cheguei, assim estava...
no máximo olhei curioso
e escrevi uns versos]

a fumaça dignifica o homem,
o enche de si.
sei o que é respirar essa falta de ar todos os dias
pesa no nariz e no pulmão
comove
fede à saudade...
e os prédios são tristes e nem sabem

as coisas (todas elas)
choram pelas ruas
e eu nem posso entender por quê...
talvez por isso eu passe reto
e baixe a cabeça
talvez por isso eu fique quieto
e aperte o passo.

seis horas da manhã nesta cidade feia,
acredite minha cara,
você não é cinza sozinha.
meu olhos,
meu coração doído
(esmagado),
são cinza como você...

(que bem sei o que é respirar essa falta)

16/07
__________________________
"(...)


Já não,
já não que a lira tenho desatinada
e a voz enrouquecida
e não do canto
mas de ver que venho
falar de uma cidade endurecida,
falar de uma cidade poluída
falar de uma cidade
onde a vida é cada dia menos do que a vida:
asfalto asfalto asfalto
e mais assalto
(...)"

(F. Gullar)

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

meu amigo...

"Vamos beber uísque. vamos
beber cerveja preta e barata,
beber, gritar e morrer,
ou, quem sabe? beber apenas.

"Vamos xingar a mulher,
que está envenenando a vida
com seus olhos e suas mãos
e o corpo que tem dois seios
e tem um embigo também.
Meu amigo, vamos xingar
o corpo e tudo que é dele
e que nunca será alma."

(Carlos Drummond de Andrade)

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Estilhaçando e Recompondo

não vou lamentar um coração estilhaçado, perdido em muitos pedaços. não vou dizer que o prefiriria inteiro e indivisível (de ferro!), ainda que isso possa ser verdade. não farei isso agora (acho que isso eu já fiz demais)... quero antes olhá-lo, atento e curioso, na impossibilidade de esquecê-lo por completo, de deixá-lo por aí como uma coisa natural (a apodrecer naturalmente) e que a gente nem se dá conta .

é... tudo leva a crer que meu coração foi feito mesmo para estar por aí, espalhado por entre pessoas e lugares; para que eu o perca sempre e nunca tente encontrá-lo. por mais que às vezes seja essa minha vontade, não é comigo que ele deve estar, ainda que assim fosse mais fácil, mais seguro... e há cacos dele por todo o canto! frequentemente encontro pedaços no caminho do ônibus ou em fotos antigas, em lugares que nunca estive ou nos quais eu sempre estou e aquilo faz todo sentido pra mim! fico um tempão sem passar por aquela rua ou sem me lembrar daquela(s) pessoa(s) e quando o faço (por mero acaso ou não) percebo o quanto de mim ainda está lá... e acho que é por isso que sinto tanta saudade, tanta nostalgia: é o tanto de mim que espalho no mundo, e o meu coração é muito menor que o mundo...

pessoas que nem imaginam carregam pedaços (às vezes enormes!) dele. muitas vezes prefiro que não saibam mesmo, não vem ao caso. disfarçadamente coloco  no bolso do casaco ou na mochila e eles nem desconfiam que daquele momento em diante é um pedaço de mim (e do que há em mim de mais importante) que vai com eles, mesmo que não queiram, mesmo que preferissem que não fossem assim...

e assim eu procuro passar meus dias, estilhaçando e recompondo. desculpe-me, mas é que eu não sei fazer de outro jeito.
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"Amigos morrem,
as ruas morrem,
as casas morrem.
Os homens se amparam em retratos.
Ou no coração de outros homens."

(Ferreira Gullar)

ainda sobre isso aqui: http://carbonoeamoniaco.blogspot.com/2010/05/cardiologico.html

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

sobre duas linhas incompletas

sabe garota, eu poderia tentar escrever algo sobre você. era o que eu queria! captar uma suposta essência que fosse sua, só sua e que só eu pudesse desentranhar e colocar no papel. talvez ficasse bom e eu até ficaria satisfeito, confortável, ao reler. seria você, da maneira como existe em mim (e da maneira como eu pensei que você existisse em tudo!). porém desisti de fazê-lo ao final da segunda linha... ("ei, isso é metalinguagem barata!") eu sou sempre assim... faço e desfaço. refaço, descreio, dou a minha vida, renasço e passo a tarde a pensar. sempre, sempre assim. e nunca soube exatamente se você ria por achar graça ou por desdém... (tudo bem, os ruídos e os dentes expostos por si só valiam a pena).

talvez você reflita sobre isso daqui a dez anos e sinta orgulho de ter conhecido uma pessoa como eu... ou não, em dez anos pode ser que eu seja somente um nome (mais consoantes que vogais) ou nem isso. porém, esse é um risco que se corre, o que importa, o que cabe dizer agora é que eu queria escrever sobre você, de uma maneira doce e forte. queria que um punhado de palavras te traduzissem, te refletissem (te iluminassem), ainda que deformada (as palavras sempre deformam, não é mesmo?) mas desisti (acho que o que me define melhor são as coisas das quais eu desisti) ao perceber que isso seria escrever sobre mim (como o que eu estou fazendo neste momento...) e escrever mentiras sobre pessoas que eu nunca conheci. tentar me fazer mais claro seria inventar uma estória e obscurecer a pouca verdade sobre a qual nos sustentamos (você tem uma verdade? você dorme com ela todas as noites, por medo de ficar sozinha?) e isso é exatamente o que eu não queria fazer. não agora. não nesse momento...

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Um Sorriso

Quando
com minhas mãos de labareda
te acendo e em rosa
embaixo
te espetalas
quando
com meu facho acesso e cego
penetro a noite de tua flor que exala
urina
e mel
que busco eu com toda essa assassina
fúria de macho?
que busco eu
em fogo
aqui embaixo?
senão colher com a repentina
mão do delírio
uma outra flor: a do sorriso
que no alto o teu rosto ilumina?

(Gullar, Ferreira in Na Vertigem do Dia)
_______________
que busco aqui embaixo senão colher a flor do sorriso que o teu rosto ilumina?
erótico e singelo, como eu queria...

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

em espiral

fixação por cores, por cheiros, por sons. todos os meus membros em alerta, eufóricos, suplicando o que há para se absorver. instintivamente rastejo por entre a matéria em busca de sensações. quero a parte pulsante das coisas, a vibração caótica dos corpos (inclusive os inertes). acho que isso é querer estar um pouco mais atento à vida (a vida?). é tentar provar a mim mesmo que estou vivo. estou tentando, meio que sem querer, chegar à conclusões. mas não daquelas que dão respostas definitivas e duradouras, que nos esmagam e excluem todas as outras possíveis respostas, mas sim a possibilidade de se adicionar novas visões, que se interpenetrem e se complementem... que haja sempre mais sons, mais cores e mais cheiros.

o parágrafo anterior está perdido. definitivamente. e não há tempo para lamentá-lo. há que se recomeçar dizendo (súbito) que peguei uma tesoura de dentro da gaveta e perfurei fundo meu peito pra ver um coração estranho batendo forte e um pulmão cheio de resentimentos. eram meus!  e estavam condenados. não pude mais ver meu sangue vermelho, ele não era mais vermelho, assim como a paisagem era tão somente preto e branco. o líquido que jorrava de mim tinha uma leve tonalidade esverdeada, um verde ocre e tímido (podre?) e isso não era de todo mal. havia algumas marcas no meu corpo e isso também não era de todo mal. só não pense, minha cara, nisso como uma declaração de amor (ou de fé). no máximo assumo, agora, minha culpa... (ao ver meu meu estado o doutor me desenganou... "a única coisa a fazer é tocar um tango argentino").

há uma última chance! não me encontro mais. rejeito covardemente tudo o que foi dito antes. é minha tentativa de redenção. é minha forma de me tornar desprezível. pelo menos é o que você me diria se estivesse aqui, se me alcançasse. não...você não diria nada, deixaria que eu me perdesse. pior: se estivesse aqui eu é que estaria pensando em nada.

desisto enfim, entre lamentoso e aliviado.
________________________________
"entendes finalmente
que o passado
é pura doença."

(ferreira gullar)

- entendes?

terça-feira, 17 de agosto de 2010



por que continuas?
há versos de amor em tudo que vês?
hein!? há versos?
há amor?
não. nada.
não há nada...

e lemos no jornal todos os dias que
o tempo de amar passou
"o amor acaba seu juíz"
foi ontem...
depois do jantar, antes da novela
o amor foi um intervalo comercial

e lemos na parede do banheiro que
a poesia também passou,
(e não deixou saudades)
foi uma foda
bem dada
mas não deixou saudades...
e bocejamos no final

...
num desatino
ainda ejaculas versos,
descontrolavelmente
na pele amarela dela
ainda procuras alívio (no tormento)
e chama amor
(e chama poesia)
a noite que passas acordado
com um cigarro entre os dedos a olhar o corpo estranho que [dorme na tua cama.


por que continuas!?

terça-feira, 3 de agosto de 2010

poderia cantar qualquer música para você agora.
desde o mais novo sucesso das rádios até aquela que só eu sei que existe (por que fui eu que fiz).

cantaria uma dessas muitas, excessivamente românticas, que dizem tudo aquilo que de tão real só pode ser mentira.
te encantaria e te faria rir quando eu, bêbado ou envergonhado, desafinasse ou esquecesse um pedaço da letra.

tudo bem, ainda assim você acharia graça e pediria para eu deixar de bobeira. mas a tua mão afagando meu cabelo e os teus olhos perdidos nos meus seriam um discreto e doce pedido para que eu continuasse: "cante para mim. mantenha-me no alto, no centro do seu universo. que eu seja ainda o motivo das suas notas, mesmo que desafinadas".

você sabe, uma canção seria o melhor que eu poderia fazer...
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"Faça silêncio por um momento
Não precisa falar
Experiências, experimentos
Não ponha letra, nem perca tempo
Só precisa tocar
Sinta o som dos instrumentos . "

(Relespública)

quarta-feira, 28 de julho de 2010


neste quarto de fogo[solitário]
no telhado um letreiro
[esfumaçado ]
candeeiro no peito
[iluminado]
o cigarro no dedo
[incendiário]
o cinzeiro esperando
[comentário]
da palavra carvão
[fogo de vela]
meus dois olhos pregados
[na janela]
vendo a hora ela entrar
[nessa cidade]
tô fumando o cigarro
[da saudade]
e a fumaça escrevendo
[o nome dela!
]



(quando o sono não chegar)

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"eu vou casar com a saudade, numa madrugada fria"

sexta-feira, 23 de julho de 2010

acérrimo

talvez eu volte em seguida, logo após os créditos finais, para provar o quanto eu estou certo. e dessa não será blefe ou "exercício criativo". não haverá um sorriso debochado no meu rosto ou uma caneta na minha mão.

não me questionarei, nem esperarei você surgir para distorcer o que eu digo. e pouco me importa, por enquanto, ser infantil e ridículo. basta que eu te faça sentir o peso das minhas certezas (são fardos!). das minhas dúvidas e divagações (leves, flutuantes...) você já sabe há tempos e não me espanta que tenha rido de muitas delas...

não é minha intenção iludir, mas sou eu que estou em jogo! e sendo assim preciso deixar as mesuras e os bons costumes de lado. não há opção...


tampouco estou preocupado em ser justo, correto, ponderado ou em dar mostras das minhas virtudes. não é hora para isso! basta que eu saiba e você saiba que estou certo, desesperadamente certo e que isso faz toda diferença.

necessito da certeza como quem, faminto, só quer um pouco de comida. como quem procura um afago, um abrigo, como quem busca a si próprio ou a deus.

porque só assim eu vou poder olhar de novo nos seus olhos (e no das pessoas a nossa volta), vou me sentir redimido e renovado. vou voltar a crer em mim.

porque eu cansei de dar de ombros sobre o que eu penso. cansei de me relativizar para ficar mais perto de você e de suas ideias medíocres. sei bem, claro, são tão medíocres quanto as minhas. acontece que dessa vez eu vou tentar salvar só a minha pele. carregarei somente a minha mediocridade e que cada um de nós carregue a sua... e se você por ventura ainda quiser me jogar coisas na cara, quem vai achar graça sou eu (''nada me prender a nada").

pelo menos hoje, agora, em relação a este assunto, eu sei que estou certo e você não.
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segunda-feira, 19 de julho de 2010

"devaneio esferográfico"

Preciso reduzir seu corpo à tinta preta.
Preciso te escancarar, vulnerável, nesta folha.
Vomitá-la, frágil, ordinária da minha caneta
Falsificar-te, amassar-te, jogar-te fora
Simples mancha, bolha, ideia abstrata

Preciso torná-la um rascunho, um despropósito!
Reduzir seus membros à minha caligrafia
Descuidada nas linhas de um caderno velho.
Inventar-te com começo, meio e fim,
Mera ficção. Errar-te, escrever de novo...

Caso contrário você surge enorme do meu subconsciente
Com muitas pernas, muitos braços, olhos e bocas grandes
E me amedronta e me ridiculariza.
Toma conta das minhas roupas, das minhas desculpas,
Desaba um céu sujo e encarnado sob meus ombros,
Impregna a matéria sólida e densa dos meus sonhos.

(Meus deus! seu sorriso ganha vida e ri sozinho e seus dentes me mastigam e me cospem fora e pensar em algo se torna pensar somente em você e nem pensar posso mais, posto que é você que passa a pensar meus próprios pensamentos!)

(Ituverava - 05/2010)
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"No mundo há muitas armadilhas
e o que é armadilha pode ser refúgio
e o que é refúgio pode ser armadilha"
(Ferreira Gullar)

quinta-feira, 15 de julho de 2010

nota

"Já não me entendo mais. Meu subconsciente
Me serve angústia em vez de fantasia (...)"


(Mal sem Mudança/ Manuel Bandeira)
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é, mas fora isso a vida é boa.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

O INFERNO

começa pelo olho, mas em breve é tudo. Uma poeira que cai ou rebenta nas superfícies. Se tivesse certeza de que ao fim destas palavras meu corpo rolasse fulminado, eu faria delas o que elas devem ser, eu as conduziria a sua última ignição, eu concluiria o ciclo de seu tempo, levaria ao fim o impulso inicial estagnado nesta aridez utilitária em cujo púcaro as forças se destroem. Ou não faria. Não faria: uma vileza inata a meu ser trai em seu fulcro todo movimento para fora de mim: porque este é um tempo meu, e eu sou a fome e o alimento de meu cansaço: e eu sou esse cansaço comendo o meu peito. Porque eu sou só o clarão desta carnificina, o halo deste espetáculo da ideia. Sou a força contra essa imobilidade e o fogo obscuro minando com a sua língua a fonte dessa força. Estamos no reino da palavra, e tudo que aqui sopra é verbo, e uma solidão irremissível,

(Ferreira Gullar)

sexta-feira, 2 de julho de 2010

feérico

"é claro que a vida é boa". tal pensamento, aparentemente sussurrado em seu ouvido, tomou conta de todo o seu corpo, como num arrepio, enquanto ela lentamente despertava do envolvente feitiço daquele final de tarde. por quanto tempo havia dormido? realmente acordara? pois tudo parecia muito mais leve, como num sonho. ela mesmo sentia-se flutuar, apesar de ainda sonolenta.


não pensou em mais nada. ergueu-se com vigor e o chão se desfez em movimentos ondulantes sob seus pés. não se importou com os objetos que dançavam coloridos à sua volta, apenas tomou o cuidado de não esbarrar neles. com seus passos lépidos e os braços soltos, ela também dançava, envolvida que estava naquele quase escuro de início de noite. tudo era um grande abraço e podia sentir as carícias daquela atmosfera etérea. tocava uma música muito bonita ao longe, mas ela escutava atenta e cantarolava sua melodia. apertou os lábios num sorriso suave. como era serena sua satisfação. sentia-se feliz e nem sabia o porquê.

terça-feira, 29 de junho de 2010

sobre bagunças [ou não]

estava tudo um grande bagunça...

é que eu, inadvertidamente, abri esse grande armário no qual havia guardado de qualquer jeito um monte de coisa e tudo acabou desmoronando em cima de mim. é... no furor de me ver livre, soquei da maneira que pude aquele monte de coisas onde coubesse.

por um lado foi bom que tudo caísse sobre mim. não poderia deixar daquela maneira e mais cedo ou mais tarde teria que tentar dar alguma ordem àquilo. a princípio senti uma grande angústia, uma vontade de desistir, mas tempo e paciência ajudam bastante nessas horas!

não sei direito até que ponto consegui fazê-lo (talvez alguns objetos tenham caído em cantos que não posso ver agora), mas sei que está melhor agora. joguei uma boa parte fora e o que guardei de volta está devidamente acondicionado em caixas fechadas com etiquetas indicando "coisas velhas". ainda faz sentido mantê-las, mas somente como recordações.

[e depois, ainda esquecerei datas e nomes]

terça-feira, 22 de junho de 2010

.

"Said the hero in the story
'It is mightier than swords
I could kill you sure
But I could only make you cry with these words'".
(Get Me Away From Here, I'm Dying/ Belle and Sebastian)

"Nenhum metal pode perfurar o coração com tanta força quanto um ponto final colocado no lugar certo"
(Isaac Bábel)
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Ainda sobre essa coisa toda de palavras (e pontos finais), a força que elas contêm e sua capacidade de mover o mundo (e protagonizar muitos outros acontecimentos menores e ainda assim relevantes).

Sim, pode-se matar com espadas. Pode-se matar de muitas outras maneiras. É um ato relativamente simples e sem mistérios. Muitos animais matam outros animais o tempo todo. Não somos exatamente originais ao fazê-lo. Mas a capacidade de fazer chorar com palavras sim é algo próprio do ser humano. É a colisão de existências a princípio separadas umas das outras. É fazer-se presente frente ao outro da maneira mais contundente possível. Tomar de assalto seus sentidos e seus pensamentos...

Gosto desses dos dois trechos acima justamente por evidenciarem isso. Como algo imaterial, que não existe senão simbolicamente e por convenção, pode ter toda essa efetividade latente. Como podemos tocar um outro distante e praticamente inacessível por meio do que se diz ou do que se escreve. Sim, se fôssemos ilhas as palavras seriam pequenos barcos que, ainda que de maneira tímida e pouco eficaz, permitiriam esse contato. Permitiriam que eu pudesse causar reações no outro sem encostá-lo, sem nem mesmo conhecê-lo.

O que é um ponto final (e a escrita de maneira mais geral)? Tudo e nada ao mesmo tempo. Friamente analisado é uma marca (uma mancha), que pode dizer absolutamente nada, não fazer sentido algum. Mas frente aos olhos certos (e ao coração certo?) pode causar as mais diferentes sensações. E é estranho sentir o coração perfurado dessa maneira. Parece loucura quando se lê ou se ouve determinadas palavras (ou ainda certos silêncios) e as sentimos como se elas fossem vivas, ou como se ali pudessemos presenciar uma vida, no sentido mais material e pungente possível. Um soco no estômago ou o chão perdendo sua consistência sob pernas bambas... Coisas "inventadas" que tem a força de coisas "reais".

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acho que complementam:

http://carbonoeamoniaco.blogspot.com/2010/04/urgentissimo.html

http://carbonoeamoniaco.blogspot.com/2010/04/ainda-sobre-urgencia.html

sexta-feira, 11 de junho de 2010

duas pernas ocas (ou pausa para o sentimento do mundo)

- amputaram-me. não tenho mais uma terceira perna e sinto toda a sua ausência. tenho dificuldade em me manter ereto e firme. sem ela não me encontro, não estou mais sempre aqui.

- respirar o ar da manhã de são paulo é algo difícil, posto que faz frio e o dia já nasce estragado. mas eu não o jogo fora, como se poderia fazer com uma fruta. mordo, mastigo, engulo, digiro... sem pensar em nada [e isso até o torna mais belo].

- titubeio em duas pernas, mas sinto uma profunda dignidade em manter-me assim. a cada passo que dou uma espécie de orgulho infantil me corroi por dentro e me reconstroi por fora. e isso me alivia!

- enfim, tenho um retrato e algo na lembrança. mais ainda: a expectativa de voltar a ser alguém que eu nunca fui.
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http://carbonoeamoniaco.blogspot.com/2010/05/agora-percebo-que-estamos-amputados-e.html

http://carbonoeamoniaco.blogspot.com/2010/06/perdi-alguma-coisa-que-me-era-essencial.html

quinta-feira, 10 de junho de 2010

duas pernas e o sentimento do mundo


"perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. essa terceira perna eu perdi. e voltei a seu uma pessoa que nunca fui. voltei a ter o que nunca tive: apenas duas pernas. sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar."


(Lispector, Clarice. A Paixão Segundo G.H., págs. 09 e 10. Editora Rocco: 2009)

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Poxa Clarice, logo nas primeiras páginas vem me jogar isso na cara!? Poderia ter esperado um pouco mais...

quarta-feira, 9 de junho de 2010

pausa oca

"Agora percebo que estamos amputados e frios.
Não tenho voz de queixa pessoal, não sou
um homem destroçado vagueando na praia.
Muitos procuram São Paulo no ar e se concentram,
aura secreta na respiração da cidade.
É um retrato, somente um retrato,
algo nos jornais, na lembrança,
o dia estragado como uma fruta,
um véu baixando, um ríctus
o desejo de não conversar. É sobretudo uma pausa oca
e além de todo vinagre."

(Carlos Drummond de Andrade)
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agora percebo... mas ainda creio que seja melhor assim (hesito, porém).

e eu sinto cada palavra, como se fosse um corte.

[havia escrito antes, num devaneio, sobre a importância de se arrancar os dedos junto com os aneis (carbonoeamoniaco.blogspot.com/2010/05/intempestivo.html). reconheço, porém que, nos "percebermos amputados e frios" atormenta... não nego que a ausência (de algo que tinhamos por nosso) doi. só que mais doloroso seria mantê-los para lembrar-nos os aneis perdidos. e quando finalmente houver um novo dia (depois da "pausa oca e além de todo vinagre") seremos finalmente outros. afinal, é da carne viva que surge a pele nova, né? (ou será sempre cicatriz?)]

terça-feira, 8 de junho de 2010

teu poema

o teu poema faço agora.
necessito fazê-lo
ou cravar esta caneta muito fundo no teu peito
(o que te doesse mais!)
para que de alguma forma
me compreenda, me absorva.
que por um breve momento fosse eu de fato um poeta
(como esses que há no mundo)
e te fizesse chorar com um ponto final
certeiro,
cravado no papel ou em ti.
_______________________________
e suas lágrimas seriam, para mim, um ponto final?

quarta-feira, 2 de junho de 2010

cardiológico

E aí suplicam: “Pára de amarrar o coração em tudo, em qualquer coisa. Você coloca o coração em qualquer coisa!” O que vem a seguir sou eu brava com todos eles porque acho que devo amarrar o coração onde eu bem entender, uma vez que o órgão é meu. Olham pra mim com a cerveja transbordando pelos olhos e me chamam por um nome que inventaram…e balançam a cabeça. Desistiram. Preferi ficar quieta na mesa, mas eu sei, e eles sabem que eu sei, que o coração de cada um deles também está em qualquer coisa. Nunca nos pagam o que merecemos e seguimos em frente. Se certos dedos estalarem, lá estaremos nós. A ciclotimia da vida nos une numa mesa, sentados em algum sofá, não importa onde – e se for na casa de alguém, eu insisto em passar na padaria e comprar um pote de sorvete que ficará para sempre esquecido no freezer. Igual ao coração amarrado em qualquer coisa. É sempre um descompasso, eu ensinei a alguns: “não aplauda no contratempo!” – sendo que eu mesma faço isso com uma frequência assombrosa, urrando no silêncio e me calando na catarse. Eu virei e falei pra um deles que o meu coração está nas coisas certas, pois se não o deixo por aí, como suportar a rotina? Há uns cacos na escadaria do Teatro Municipal, um milhão de pedaços na Cardeal Arcoverde, na Casa Verde, naquela praia, pelas estradas, em outras cidades, na Serra da Graciosa, na Mooca, sob o poste de luz* e dentro da sua guitarra, não importa que você desafine. Está ali quando eles posam pra mim, sorriem pra mim, reluzem pra mim e eu tenho que fazer cálculos e mais cálculos pra saber se haverá chance para o equipamento melhor; está na porta do elevador pantográfico, está em você, em você e nele, eu não sei o que sobrou dele em mim. Mas o de vocês também nunca está aí. Por isso enchemos os copos uns dos outros, já notou que ninguém enche o próprio copo? É um preenchendo o vazio daquele que está ao lado, portanto não torne a dizer que só eu esqueço a porra do coração amarrado em qualquer coisa. Porque o meu está em vocês. Posso ficar brava e eu ainda o deixo com todos vocês. Quem trouxer cerveja tosca vai ter que beber cerveja tosca. Hoje vai ser pizza com videogame – e aquilo de sempre. O sorvete está no freezer, se bater aquela vontade de “alguma coisa doce”. E eu continuo por aqui.
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texto sensacional retirado na íntegra daqui ó: http://espressoepuro.wordpress.com/2010/03/31/sabor-flocos/

realmente, se não amarro meu coração em certas coisas como posso suportar a rotina?
o meu, eu amarro onde? [o meu está em vocês...]

terça-feira, 1 de junho de 2010

o fingimento e a poesia

“o que interessa em arte não é a sensibilidade, mas o uso que se faz da sensibilidade. Não o poema de uma verdade, mas a verdade de um poema.”
(Ficções do Interlúdio, pág. 273)


Será que o poeta (ou o artista em geral) realmente sente aquilo que expressa?
Aquilo que chega até nós por seus versos é realmente uma verdade, algo que ocorreu ou ocorre? Faz parte de seus sentimentos, da sua experiência?
Até que ponto o poeta é somente um “fingidor”? Até que ponto ele de fato sente o que expressa?
Essa questão surgiu ao acaso (né, Fernanda?) e realmente é bem interessante (ok, não se pautem por mim para definir o que é interessante ou não...).

De acordo com a citação acima (com a qual eu concordo), é secundário se preocupar se determinado assunto ou sentimento faça parte da experiência pessoal do autor. Se ao falar sobre a infância, por exemplo, ele esteja de fato resgatando a sua própria ou imaginando uma. Entra aqui a possibilidade de se criar ficções, algo central para a literatura: Falar a partir de diversos pontos de vista, atuar, inventar diferentes personalidades. Enfim, criar e se recriar.

Algo próximo do que se vê de maneira brilhante e radical em Fernando Pessoa. Seus heterônimos (e o próprio ortônimo) escrevem e apresentam personalidades diferentes, mas são reais, na medida em que suas obras são realidade. Há “verdade” em seus poemas, independentemente de sua existência física ou da veracidade dos dados biográficos de cada um deles. O próprio autor Fernando Pessoa é colocado em pé de igualdade com os heterônimos, na medida em que não se pode definir com precisão se esse é mais ou menos real, enquanto personalidade, que os outros. Ou seja, por mais que o indivíduo Fernando Pessoa histórico seja real, ele mesmo se isenta de colocar a obra assinada enquanto tal como mais verdadeira do que aquela assinada com outros nomes (e fruto de outras "personalidades").

Ainda assim, não acho que o poema perca sua sensibilidade só pelo fato de não ser um testemunho pessoal do autor ou não expressar exatamente sua existência biográfica. O poema é uma “verdade” em si, possui sua própria beleza enquanto obra. Materializa-se, torna-se uma existência em separado de seu criador a partir do momento em que é exteriorizada. O próprio fingir é uma ferramenta importante e que de maneira nenhuma invalida o poema. Escrever sobre uma infância imaginária, inventar o que quer que seja (sobre si mesmo ou terceiros) ainda assim é dar forma a sensibilidade do momento, é ter a capacidade de traduzir aquilo que há na mente de diferentes maneiras.

Por mais distante que supostamente esteja da realidade do poeta, os sentimentos e sensações que vemos emergir de sua obra nunca são de fato exteriores a ele. Para que possa ser objetivado, colocado no papel, aquilo de alguma forma deve fazer parte da mente do autor. Pode-se escolher os temas mais distantes e inesperados, tomar como foco o ponto de vista de personagens totalmente antagônicos; ainda assim o autor nunca vai conseguir escapar da sua experiência enquanto indivíduo. O que quer que ele escreva, que ele invente, não poderá escapar de sua própria subjetividade. Acho que isso é meio óbvio (dizer que só poderá pensar pela sua cabeça, sentir pelos seus sentidos), mas quero enfatizar que fingir/ inventar/ atuar ainda assim é dar forma aos seus próprios sentimentos. E colocar em prática a "pose", dar novos contornos a si mesmo e ao que se pretende passar. Por mais que, ao falar sobre a infância, o autor não fale da sua própria, é de si que surge aquilo que ele escreve, ou caso ele só reproduza uma opinião exterior, ainda assim ela passa pelo seu “filtro”. Tomar contato com as coisas é ter impressões sobre elas. Expressar esse contato é também expressar suas próprias opiniões e sensações. Há sempre algo de pessoal. Ainda mais na poesia, que permite uma liberdade muito maior no uso da linguagem e na expressão da emoção.

Ou não. E que alguém chegue a conclusões melhores por si mesmo...

segunda-feira, 31 de maio de 2010

fragmento




- ocupado que estava a ler o jornal não pode perceber que o céu ainda era vermelho. vermelho do sol poente e do ar excessivamente poluído.

- à noite por certo choveria, mas ele saiu de casa sem o guarda-chuva.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Concreto

Serei muralha!

Impassível,
Resistirei aos seus ataques
com a placidez fria do cimento

Insondável,
Não me encontrará frestas,
Não exibirei rachaduras

Intransponível,
Desistirá de me escalar
Se espantará com minha altura,
Temerá meu arames farpados

Pois serei enorme
Rígido
Eterno
Concreto puro!

Natural,
Brotarei da terra
Minhas raízes de aço fincadas no chão.
Estrutura enigmática
(Não saberá nunca o que se passa)

À sua frivolidade de flor,
À pungência de suas pétalas,
Guardarei minha gravidade de pedra.

Replicarei o seu olhar
Em tons de cinza.
____________________________________

[...]

"Se dê ao luxo do desperdício
de um grande amor
e economize seus sorrisos"
(http://cemmilhoras.blogspot.com/2010/03/blog-post.html)

quarta-feira, 26 de maio de 2010

epílogo

"Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo."
___________________________________
Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo...


[e que diabos esse tal de carlos pensa que sabe tudo sobre mim!?]

terça-feira, 25 de maio de 2010

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim aolhar para a vida, perdera o sentido da vida.


Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...


O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

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interessante como álvaro de campos se mostra aqui especialmente saudoso, sensibilizado por suas lembranças, lamentando que tenha perdido o que hoje não há (a casa vendida, os que se foram...) e não pode trazer consigo. e a consciência da perda, por si só, já é não poder alcançar...

datas como o meu aniversário me dão (ou já me deram) essa sensação de nostalgia. momento (quase involuntário) de avaliar o que passou e o que está. algumas vezes deixando, no fim das contas, um certo gosto amargo por algo que nem se sabe exatamente o que é (a vida inteira que poderia ter sido e não foi? quem explica?). talvez por isso tenha optado por deixar passar o mais imperceptível, o mais suave possível. esperar pouco, me manter centrado.
e ainda me divirto mais.

sábado, 22 de maio de 2010

SENECTUDE PRECOCE

Envelheci. A cal da sepultura

Caiu por sobre a minha mocidade...

E eu que julgava em minha idealidade

Ver inda toda a geração futura!


Eu que julgava! Pois não é verdade?!

Hoje estou velho. Olha essa neve pura!

- Foi saudade? Foi dor? - Foi tanta agrura

Que eu nem sei se foi dor ou foi saudade!


Sei que durante toda a travessia

Da minha infância trágica, vivia,

Assim como uma casa abandonada.


Vinte e quatro anos em vinte e quatro horas...

Sei que na infância nunca tive auroras,

E afora disto, eu já nem sei mais nada!


(Augusto dos Anjos)

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Caiu como uma luva, não exatamente pelo pessimismo ou pela sensação de estar precocemente velho (quer dizer, talvez por isso um pouco...), mas pelos vinte e quatro anos em vinte e quatro e a saudade (ou dor?) que ficou. É sempre aquela história "pô, o tempo passou rápido demais", fica até clichê. Mas será que teria outra frase que se encaixasse melhor?

domingo, 16 de maio de 2010

tarde de maio

"eu nada peço de ti, tarde de maio,
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de
converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém
que precisamente, volve o rosto, e passa...
Outono é a estação em que ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes morremos."

(Carlos Drummond de Andrade)
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sim! tantas que perdi a conta

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A saudade que me deixou fraco
A ausência que me fez mais louco
(Quis vender a mim pra te comprar)
Quis viver em ti e me deixar.
A esperança que me deixou morto
Morto! Sem coração batendo, sem respirar
A saciedade que se tornou vício
Inescrupuloso, trafiquei seus olhos
Débil! Sem logos nem lugar,
Injetei cada parte do seu corpo em cada parte do meu corpo
E a saudade passou
E eu passei...
E fiquei mais longe
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De quando que é? Sinceramente não me lembro. Mas que importa? Estou sempre sentindo saudades... (e "daqui a vinte anos farei teu poema")

domingo, 9 de maio de 2010

intempestivo


Sabe, a gente não precisa passar incólume por tudo. Querer chegar ao final inteiro, completo... Há que se saber perder partes de nós mesmos. Partes que só estariam lá para confundir, atrapalhar. Estorvo! Já que os anéis se foram levem os dedos também, são dispensáveis. Por que não arrancá-los, nós mesmos, de uma vez? Membros necrosados, putrefatos... Não há que sentir a perda do que não vale mais a pena manter consigo. Fiz o melhor que pude, mas meus braços não são mais meus. Não há por que fingir que são. Dispenso a sensação de perda. Prefiro acreditar que eu os arranquei (por que sabia que assim seria melhor). Melhor ainda se depois de tudo ficar a sensação de "porra, deveria ter feito isso mais cedo!"
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"One more drink and I'll be fine
One more girl to take you off my mind "

(The Magic Numbers)

"Minha mão está suja.
Preciso cortá-la.
Não adianta lavar.
A água está podre.
Nem ensaboar.
O sabão é ruim.
A mão está suja,
suja há muitos anos."

(Carlos Drummond de Andrade)

sábado, 8 de maio de 2010

The Ballad of

Jesus was born in 1979
The kind of guy has something nice
He found out he'd like to kiss some girls
That's when Devil enter in his world
Devil was 29 years old
When she found this pretty boy
Things went colloured inside her world
'cos Jesus was all she was looking for
Jesus promised to go to Devils's place
He never thought he was going out of his way
24 years old, pretty young faced though
He was really near to finally fall in love
She set the table up waiting for him
She's never thought good on bad was a sin
She'd promise him a weding ring
But suddenly the phone has started to sing
"hello there, this is from the Police
I'm sorry but we have some bad news"
That's when Devil started to cry
From that moment on she hoped she dies
Jesus got lost on his way to Devil's home
He was trying to find out what was going wrong
His car went out of control
He crashed agaist a wall
He was really near to finally fall in love

(forgotten boys)


The Ballad Of

Jesus nasceu em 1979
O tipo de cara que tinha algo de legal
Ele descobriu que gostaria de beijar algumas garotas
Foi então que Devil entrou em seu mundo
Devil tinha 29 anos
Quando encontrou esse belo rapaz
As coisas foram se colorindo em seu mundo
Porque Jesus era tudo o que ela procurava
Jesus prometeu ir à casa de Devil
Ele nunca pensou que estava saindo de seu caminho
24 anos, apesar do rosto mais jovem
Ele estava realmente perto de finalmente se apaixonar
Ela arrumou a mesa esperando por ele
Ela nunca pensou que o bem com o mal era pecado
Ela prometeu à ele um anel de noivado
Mas de repente o telefone começou a tocar
"Alô, aqui é da Polícia
Sinto muito, mas nós temos más noticías"
Foi quando Devil começou a chorar
A partir daquele momento ela desejou morrer
Jesus se perdeu no caminho para a casa de Devil
Ele estava tentando descobrir o que havia de errado
Seu carro saiu de controle
Ele bateu contra o muro
Ele estava realmente perto de finalmente se apaixonar

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um casal assim? por que não?

quarta-feira, 5 de maio de 2010

I.
não caibo em mim
por toda minha superfície transbordo
onde estão as minhas mãos agora?
(afogando-me, nem posso dar adeus)
não alcanço as extremidades dos meus braços
no escuro procuro meus olhos, mas
são outros os olhos que encontro

o que acho que digo só penso
se perde na língua dormente,
nos dentes cravados, lascivos
e quando penso calado, confesso,
inundo suas quatro paredes
invado seus tantos ouvidos
dissolvo fronteiras,
em busca de abrigo

impregno de tempo sua pele...

II.
verborragicamente
me espalho
ocupo seu chão, seu colchão,
seu teto e seu entorno
sou todo sensações,
todas as sensações!

vazio que estou
flutuo.
não sinto sono
nem sede
(e nem frio)
por que haveria de sentir?
nem ao menos dou por mim
só há esse topor que não me deixa ser menos explícito,
que me impede de estar em silêncio
que me derrete e me anestesia
(e derretemos nós e escorremos pelas beiradas)

não sei mais onde acabo
enfim, transbordo.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

ainda sobre a urgência

Talvez e só talvez (aliás tenhamos essa palavra sempre à mão, para que possamos afrouxar as ideias e arriscar mais) tenha me passado pela cabeça o desejo (ou a curiosidade) de que cada palavra fosse a palavra mais exata, que só viesse à tona por absoluta necessidade, pela falta que ela faz no mundo e que em cada uma delas transparecêssemos sem rodeios.

Simples: Nada de dizer e desdizer. Ou dizer sem ter certeza, esperando a possibilidade de voltar atrás depois. Que cada palavra dita (e por sua vez ouvida) cobre o seu preço, que se faça sentir na pele. Que fique marcada em nós sua pulsão de objeto vivo e forte... Nunca haveríamos de sentir tanto o que dizemos e se ainda assim disséssemos seria por pura falta de opção. Falamos sempre tanto, nos perdemos entre milhares de palavras frívolas, rasas. Quase objetos de decoração... Se fosse dizer que ama, deveria amar a ponto de estar disposto a sentir essas palavras doerem e ainda assim seria menos dor do que calá-las. A mesma coisa ao dizer que odeia. Ou que mata. Se diz que é assim, que seja mesmo. E de uma maneira tão visceral e profunda que não reste nada mais, a não ser aquelas palavras e o que elas trazem consigo de urgente.

Cada palavra com a força de uma vida. Aí sim haveria poesia.

terça-feira, 27 de abril de 2010

urgentíssimo

que cada palavra dita se torne uma chaga!
queime sua carne não sendo palavra exata
só acredito em quem sangra o que diz
por pulsão! necessidade de se fazer ouvir
(e se não dissesse, aí sim, estaria perdida)

que cada palavra, de sua boca, saia dolorida
e a dor só reforce a urgência da língua
que te rasgue a garganta, te abra em ferida
só assim pra saber que morreria pelo que diz
e que estar em silêncio seria deixar de existir

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ainda assim você repetiria as mesmas palavras? morreria por elas?

quinta-feira, 22 de abril de 2010

outros outonos

"enquanto eu observava a coloração da luz solar incidindo sobre o papel, tive um profunda sensação de outono.
"de fato, embora o céu estivesse nitidamente transparente, a luz refletida era clara, mas não ofuscante, e de uma beleza profunda."

(Tanizaki, Junichiro - A Vida Secreta do Senhor de Musashi/ Kuzu, pág. 171. São Paulo: Companhia das Letras)
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separados por tempo e espaço. quase oitenta anos e mais de 18 mil quilômetros, para ser um pouco mais exato. reconfortante a ideia de que o outono que sinto aqui, enquanto estado de espírito, é uma reprodução de muitos outros outonos que se repetem.

terça-feira, 20 de abril de 2010

exercício

me vê e franze o cenho, numa espécie de cumprimento entre tímido e descontraído, anunciando sua chegada. seus lábios se comprimem e se alargam ligeiramente, esboçam um sorriso que não chega a despontar completamente. a certa distância diminui os passos, tornam-se eles mais lentos e calculados. em cada um deles mede a distância ideal. todo seu corpo, ritmado, flutua e não sabe.

sinto sua aproximação, meus sentidos estão atentos, voltam-se pra ela e só pra ela. por um momento estou completamente desarmado. /tento, porém, disfarçar./ sinto seu perfume, sei que é novo (não o havia sentido antes) e penso em dizer que me agrada. há algo de diferente no seu cabelo e apesar de tentar descobrir exatamente o que, me perco em tantos outros pequenos detalhes que não posso mais pensar só nos cabelos. a superfície alva. se esticar o braço posso tocá-la.

/é, mas não toco.../


//: 17/09/2010

segunda-feira, 19 de abril de 2010

"duas noites no deserto.

segunda-feira tudo está no seu lugar."

(enghaw)
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é sério!

sexta-feira, 16 de abril de 2010

IV.
reli todas as suas cartas
coisas que nem lembrava mais que existiram
(e existiram aqui!)
descobri outras tantas...
senti-me um vouyer de mim mesmo.
descobrindo segredos,
devorando linhas que não eram pra mim,
não mais...
um amontoado de folhas que guardava para uma sombra
que julgava eu não mais pertencer a este mundo.
será que ele ainda voltaria?
se importaria com a minha indiscrição?

V.
sentimentos e situações desconhecidas.
suas confissões grudavam em minhas retinas
e logo me pareciam íntimas, apesar de apagadas.
duvidei de mim entre o novo e o revisitado, mas
ainda assim pude descobrir duas pessoas nessas palavras.
dei-lhes forma, os recriei.
uma sempre em silêncio, só existia em citação,
muda frente ao descompasso da outra
que ia do lamento à felicidade, da hesitação ao impulso,
de acusações à súplicas no espaço de um parágrafo.
declarações de amor,
irrascíveis
desorganizadas
incisivas
amendrontadas.
assim, como as cartas de amor devem ser

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"Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. Também escrevi em meu tempo cartas de amor. Como as outras, ridículas."

(Fernando Pessoa)

quinta-feira, 15 de abril de 2010

outonal

"gosto do sol de outono".
nada mais claro e direto... esse pensamento me veio à cabeça, ou melhor, essa sensação percorreu todo meu corpo, logo após atravessar a rua, sair da sombra que tornava ainda mais frio o vento forte que cortava os prédios do centro e pisar a diminuta mancha amarela que o sol produzia nos ladrilhos em preto e branco na calçada do outro lado.
o sol, até poucas semanas atrás forte e escaldante sobre minha cabeça, era agora uma luz fraca, tímida, pedindo licença para me aquecer, para ofuscar a minha vista... o recebi com simpatia, como quem lembra de algo que esqueceu, não porque havia deixado de existir, mas sim porque se distraiu por um instante (e a vida é cheia de distrações), era bem-vinda aquela luz. gostei de sentí-la e sorri ao me dar conta desse pensamento (ao atravesar a rua...).

terça-feira, 13 de abril de 2010

verso vivo

perdi
em mim
o verso inconveniente que pertubou meu sono, me impediu de ler [as notícias, e quase me faz ser atropelado no caminho pro [trabalho!

como eu queria tê-lo pego de surpresa
e colocado à minha frente.
que me dissesse boas verdades; daria-lhe o troco!
triunfante o trancaria numa folha quase amassada,
com letra especialmente descuidada.
seria enfim um verso pronto
(eternamente nessa forma tediosa).
perderia-o no meio de um livro
ou na segunda gaveta da escrivaninha.
sairia da minha cabeça,
silenciaria-se em mim
reduzido a tinta.

mas,
que diabos tinha que deixá-lo fugir!?
agora não há quem o faça parar...

segunda-feira, 12 de abril de 2010

por um instante...

"sentei-me à sua frente. como era bom rever aquele rosto tão familiar. quanto tempo havia se passado? me pareceram séculos. talvez tenha errado a conta na folhinha... deixei de pensar nisso. estava aqui, basta. deitei meus olhos curiosos nos teus detalhes. procurei lembrar-me deles, decorá-los novamente. sim, era você, não havia dúvida. mas ainda assim percebi como estava mudada. o que havia mudado? pensei novamente nos séculos passados. parecia desgastada, cansada. não o rosto, ainda iluminado e acolhedor. mas a alma (ou algo que a valha), essa sim não era mais a mesma, mais dura talvez? era outra! quis saber o que havia se passado enquanto estive fora (foram séculos?). não tive coragem de perguntar, afinal, não tinha mais o direito de saber. senti frio. pensei em coisas. parei perplexo. não era mais a mesma. natural que não fosse, as coisas se vão. tudo nos falta. o que será que faltou a ela?"

sexta-feira, 9 de abril de 2010

querido anônimo

I.
desculpe-me,
eu quase não consigo me lembrar de quem eu fui.
sou outro agora e não me entendo...
me escondo em sombras ou num sorriso largo.
entendo pouco o que reflete a folha.

a mão esquerda que escreveu essas linhas,
simplórias, ingênuas e secretas
(as linhas de outra pessoa de caligrafia parecida),
não é mais a mão gelada que tenho agora.

II.
pensei em você como quem conta uma história para si mesmo.
invento fatos, relembros datas.
os olhos não me fogem da memória.
está tudo aqui, eu sei.

reli a esse estranho eternecido.
provei de sua euforia
e soube que fazia ele (à sua maneira)
o melhor possível.
(será que você diria o mesmo?)

tudo ainda, como deixei:
a sequência de números (que tocam um telefone)
a conversa, perdida entre vontades
o cavalo de tróia (pelo qual você entrou)
a pergunta, a resposta
a resposta...

III.
um punhado de anos e já não me acho dentro da minha cabeça.
estranho, me afasto...
enfim, sou finito. acabo e recomeço um milhão de vezes.
tenho lembranças,
acho que as tenho.
repasso-as todas,
tropeço em algumas.
quando foi?
onde?
com quem?
o dia exato?
me escondo em mim e deixo estar...

largo as folhas velhas.
sinto a melancolia pálida das coisas que se vão,
devagar,
(quase as toco)
e quando percebemos, já tudo nos falta.

terça-feira, 6 de abril de 2010

...e ainda

sabemos bem, você e eu, que, no fim, é sempre sobre adeus... so há o vazio, ausência tão real e viva. de doer o estômago!
beijos de febre, olhar em segredo, mãos, pernas, a pele clara, quente e desejosa de mim, seu corpo em confidência. seu cheiro! se tudo existiu um dia foi para que se soubesse que logo deixaria de exisitir. permaneceria assim: miragem, desejo, saudades... sombra pairando sobre meus pensamentos. todos os corpos são assim (só existem na lembrança)! sucessão de momentos fugazes, fugidios. tentamos retê-los em vão,sabemos ser impossível.
não lamento mais o triste destino de tudo que há e que logo mais deixa de haver. sou vazio, cabe em mim toda a ausência e mais. meu coração é do tamanho do mundo e ele se desfaz dia-a-dia. aceito, sereno, o acúmulo de tempo (coisa morta, que se quer viva), a recordação, entre bem-vinda e melancólica, que vez ou outra faça-se presente.
e afinal, a vida é ou foi?
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"Mas vem o tempo e a ideia do passado
visitar-te subitamente na curva de um jardim.
Vem a recordação, e te penetra
dentro de um cinema, subitamente.

"E as memórias escorrem do pescoço,
do paletó, da guerra, do arco-íris;
enroscam-se no sono e te perseguem,
à busca de pupila que as reflita.

"E depois das memórias vem o tempo
trazer novo sortimento de memórias,
até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi"


(Carlos Drummond de Andrade)

segunda-feira, 5 de abril de 2010

caindo em si

cachorra.
sangraste o meu dedão,
sugaste, deixaste-me no osso.
blefaste, mordeste o meu pescoço.
és louca se pensas que eu vou ser teu cão.
vem cá.
molhaste, mijaste-me o lençol.
bebeste meu último tostão,
fumaste meu único colchão.
fizeste de quem te atura um urinol.
vem cá.
surtaste, lançaste-me no poço.
sorriste, fudeste-me a razao.
gozaste, largaste-me no osso.
fizeste de mim o poste do teu cão.
vem cá.
surgiste, funesta aparição.
sumiste.
minhalma definhou.
voltaste,
canina assombração
fizeste de mim o traste que hoje sou.
traz cá minha ração.

(caindo em si/ mundo livre s.a.)

terça-feira, 30 de março de 2010

sobre homens e medos de verdade

"uma lembrança de mãos dadas, de casal que anda de mãos dadas pela praia na chuva, um filme
velho gravado numa fita cassete, um olhar para o mundo dentro da roda gigante...
"o homem de verdade atravessa tudo isso aguardando a solidão sem medo, que nem o moleque
cruza os olhos para aquela janela e nunca mais vê aquela garota."


queria ser esse homem de verdade. aguardar serenamente, sem medo, a solidão que cedo ou tarde chega. dizer a ela de peito aberto: "vem! te aceito como companheira". sentir as areias do tempo escorrendo pelas minhas mãos e rir cinicamente. achar graça de todo desespero...

bom seria que o sol, grave e pesado, caísse no horizonte abissal e levasse consigo os meus sonhos e pesadelos, angústias e desejos, me deixasse vazio e completo e que eu pudesse, assim, dormir um sono tão pesado e tranquilo como há muito não faço.

queria poder brindar ao dia em que estaremos todos mortos. ou antes, a cada dia em que as lembranças pesam tanto a ponto que preferiríamos não ter nascidos. que eu olhasse as coisa com a certeza de já estarem mortas, calidamente descansando a minha volta e achasse isso bonito e natural. sorriria então de copo erguido e beberia à larga. saudaria sua ausência como se fosse a melhor que eu pudesse ter.

não tenho medo da solidão. tenho medo que a lembrança e a saudade (da vida que tive ou não) penetrem cada poro do meu corpo, me sufoquem de tal forma que eu lamente a vida.
que eu renegue a vida!
que eu não seja homem de verdade...

quarta-feira, 24 de março de 2010

pequena nota (de hoje e da vida inteira)

que estranho...
até ontem essa parecia ser uma grande ideia, a melhor delas. mas hoje, confesso que me senti meio ridículo ao repassá-la mentalmente... e por isso hesitei por um momento. sempre fui muito melhor pensando do que agindo.

tudo bem, por outro lado, acho que já é hora de escancarar meu telhado de vidro, encarar com naturalidade as pedras que vez ou outra venha a acertá-lo. afinal, se não fosse assim como haveria de ser?

comentário preliminar sobre a condição humana

andei pensando...

o que mais me instiga nos seres humanos é sua capacidade de criar o mundo a sua volta, que, ao mesmo tempo, é o que os cria. viver através dele e acreditá-lo de tal forma que por ele pode-se morrer e matar.

o espaço de tempo que há entre o nascimento e a morte de cada um é repleto de uma construção de si mesmo e do que o cerca, por si próprio e por seus semelhantes. construímos o mundo, ao passo que somos construídos por ele... só tomamos forma através desse processo, evidente, constante e inescapável, mas pouco colocado em evidência.

não sei se consigo me fazer entender, mas é uma ideia até que simples, que me chama a atenção quando observo a "ilusão" (na falta de palavra melhor) que tomamos para nós. valores e padrões culturais, crenças, símbolos e ideologias, uma densa e complexa rede que nos une uns aos outros e até a nós mesmos. "nós mesmos"!? quem é "nós mesmos", senão uma construção social, um "falseamento" (na medida em que é artificial, por assim dizer)? como você se definiria se não fosse em termos coletivos?

o que além desse conjunto de símbolos e crenças compartilhadas nos impõe, por exemplo, que devemos tratar certas pessoas de determinada maneira? que devemos fazer isso ou aquilo num certo momento? ou nos prescreve certos tabus, coisas que nunca devemos fazer [sob a pena, inclusive, de deixarmos de sermos humanos]. os exemplos são infinitos. e o pior [ou não]: não há solução, porque esse tipo de trama nos constrói enquanto a construimos, de modo que se torna impossível pensá-la que não em seus termos... talvez só isso já exponha nossa extrema limitação (pelo menos em termos absolutos, enquanto seres que se acreditam "no topo", mas estão nele na medida em que são eles próprios que determinam a escala).

o poder, por exemplo. uma pessoa pode ter o direito de decidir sobre o destino de milhões de outras e o que espanta é que isso surge de lugar nenhum! ou melhor, surge, mas esse lugar é intrisecamente o mesmo lugar que cabe ao seres humanos. não há nada além (externo ao mundo) que torne aquele indivíduo melhor que os outros, enquanto ser humano, mas o fato é que acaba sendo considerado superior, agrega em suas mãos prerrogativas negadas aos outros em geral. o que efetivamente impele uma população a seguir suas ordens, temê-lo, admirá-lo, etc? não há nada, nada além exatamente daquilo que criamos para nós. dizemos a nós mesmos que aquele é o presidente, o rei, o marechal, o papa, o juiz e ao mesmo tempo reforçamos o que dizemos por nossos atos. cada um de nós só é o que é porque todos os outros acreditam e compartilham aquela crença. contamos uma "mentira" e ao mesmo tempo a vivenciamos para torná-la real.

tirando nossas características essencialmente fisiológicas, de seres constituídos de materia, não há nada além que seja externo a nós (enquanto "grupo", outra dessas criações e enquanto indíviduo pertencente a esse grupo). talvez a "alma", mas se temos todos, porque cria-se diferenças? ainda assim é extremamente difícil, para não dizer impossível, separar até mesmo nosso aspecto "animal"/ biológico do de ser humano, individuo, pessoa, etc, já que a própria forma como passamos a conhecer TUDO o que nos apresenta é marcada pela nossa consciência humana. isso fica muito evidente quando paramos para pensar na própria linguagem e como entrar em contato com o que nos cerca (e principalmente partilhar com os outros) só é possível através disso.

todos nós nascemos, crescemos e morremos, sempre presenciando o funcionamento de nosso corpo e a suas diversas mudanças. mas até isso não é indepedente desse universo simbólico extremamente amplo e profundo no qual nos inserimos. quantas formas há para nascer e para morrer? esse dois acontecimentos estão também totalmente carregados de sentidos diversos, de crenças e tradições, por mais elementar e biológico que sejam.

chego até a concluir que fora dessa surrealidade não há nada, somente o caos e a ausência total de sentido e ordem. podemos e devemos, portanto, questionar o mundo e a forma como as coisas se colocam. não há nada acima disso. uma série de comportamentos e signos sociais tidos como naturais tem origem e finalidade social. não estiveram sempre lá, à espera de pessoas que os colocassem em prática.