terça-feira, 27 de abril de 2010

urgentíssimo

que cada palavra dita se torne uma chaga!
queime sua carne não sendo palavra exata
só acredito em quem sangra o que diz
por pulsão! necessidade de se fazer ouvir
(e se não dissesse, aí sim, estaria perdida)

que cada palavra, de sua boca, saia dolorida
e a dor só reforce a urgência da língua
que te rasgue a garganta, te abra em ferida
só assim pra saber que morreria pelo que diz
e que estar em silêncio seria deixar de existir

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ainda assim você repetiria as mesmas palavras? morreria por elas?

quinta-feira, 22 de abril de 2010

outros outonos

"enquanto eu observava a coloração da luz solar incidindo sobre o papel, tive um profunda sensação de outono.
"de fato, embora o céu estivesse nitidamente transparente, a luz refletida era clara, mas não ofuscante, e de uma beleza profunda."

(Tanizaki, Junichiro - A Vida Secreta do Senhor de Musashi/ Kuzu, pág. 171. São Paulo: Companhia das Letras)
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separados por tempo e espaço. quase oitenta anos e mais de 18 mil quilômetros, para ser um pouco mais exato. reconfortante a ideia de que o outono que sinto aqui, enquanto estado de espírito, é uma reprodução de muitos outros outonos que se repetem.

terça-feira, 20 de abril de 2010

exercício

me vê e franze o cenho, numa espécie de cumprimento entre tímido e descontraído, anunciando sua chegada. seus lábios se comprimem e se alargam ligeiramente, esboçam um sorriso que não chega a despontar completamente. a certa distância diminui os passos, tornam-se eles mais lentos e calculados. em cada um deles mede a distância ideal. todo seu corpo, ritmado, flutua e não sabe.

sinto sua aproximação, meus sentidos estão atentos, voltam-se pra ela e só pra ela. por um momento estou completamente desarmado. /tento, porém, disfarçar./ sinto seu perfume, sei que é novo (não o havia sentido antes) e penso em dizer que me agrada. há algo de diferente no seu cabelo e apesar de tentar descobrir exatamente o que, me perco em tantos outros pequenos detalhes que não posso mais pensar só nos cabelos. a superfície alva. se esticar o braço posso tocá-la.

/é, mas não toco.../


//: 17/09/2010

segunda-feira, 19 de abril de 2010

"duas noites no deserto.

segunda-feira tudo está no seu lugar."

(enghaw)
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é sério!

sexta-feira, 16 de abril de 2010

IV.
reli todas as suas cartas
coisas que nem lembrava mais que existiram
(e existiram aqui!)
descobri outras tantas...
senti-me um vouyer de mim mesmo.
descobrindo segredos,
devorando linhas que não eram pra mim,
não mais...
um amontoado de folhas que guardava para uma sombra
que julgava eu não mais pertencer a este mundo.
será que ele ainda voltaria?
se importaria com a minha indiscrição?

V.
sentimentos e situações desconhecidas.
suas confissões grudavam em minhas retinas
e logo me pareciam íntimas, apesar de apagadas.
duvidei de mim entre o novo e o revisitado, mas
ainda assim pude descobrir duas pessoas nessas palavras.
dei-lhes forma, os recriei.
uma sempre em silêncio, só existia em citação,
muda frente ao descompasso da outra
que ia do lamento à felicidade, da hesitação ao impulso,
de acusações à súplicas no espaço de um parágrafo.
declarações de amor,
irrascíveis
desorganizadas
incisivas
amendrontadas.
assim, como as cartas de amor devem ser

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"Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. Também escrevi em meu tempo cartas de amor. Como as outras, ridículas."

(Fernando Pessoa)

quinta-feira, 15 de abril de 2010

outonal

"gosto do sol de outono".
nada mais claro e direto... esse pensamento me veio à cabeça, ou melhor, essa sensação percorreu todo meu corpo, logo após atravessar a rua, sair da sombra que tornava ainda mais frio o vento forte que cortava os prédios do centro e pisar a diminuta mancha amarela que o sol produzia nos ladrilhos em preto e branco na calçada do outro lado.
o sol, até poucas semanas atrás forte e escaldante sobre minha cabeça, era agora uma luz fraca, tímida, pedindo licença para me aquecer, para ofuscar a minha vista... o recebi com simpatia, como quem lembra de algo que esqueceu, não porque havia deixado de existir, mas sim porque se distraiu por um instante (e a vida é cheia de distrações), era bem-vinda aquela luz. gostei de sentí-la e sorri ao me dar conta desse pensamento (ao atravesar a rua...).

terça-feira, 13 de abril de 2010

verso vivo

perdi
em mim
o verso inconveniente que pertubou meu sono, me impediu de ler [as notícias, e quase me faz ser atropelado no caminho pro [trabalho!

como eu queria tê-lo pego de surpresa
e colocado à minha frente.
que me dissesse boas verdades; daria-lhe o troco!
triunfante o trancaria numa folha quase amassada,
com letra especialmente descuidada.
seria enfim um verso pronto
(eternamente nessa forma tediosa).
perderia-o no meio de um livro
ou na segunda gaveta da escrivaninha.
sairia da minha cabeça,
silenciaria-se em mim
reduzido a tinta.

mas,
que diabos tinha que deixá-lo fugir!?
agora não há quem o faça parar...

segunda-feira, 12 de abril de 2010

por um instante...

"sentei-me à sua frente. como era bom rever aquele rosto tão familiar. quanto tempo havia se passado? me pareceram séculos. talvez tenha errado a conta na folhinha... deixei de pensar nisso. estava aqui, basta. deitei meus olhos curiosos nos teus detalhes. procurei lembrar-me deles, decorá-los novamente. sim, era você, não havia dúvida. mas ainda assim percebi como estava mudada. o que havia mudado? pensei novamente nos séculos passados. parecia desgastada, cansada. não o rosto, ainda iluminado e acolhedor. mas a alma (ou algo que a valha), essa sim não era mais a mesma, mais dura talvez? era outra! quis saber o que havia se passado enquanto estive fora (foram séculos?). não tive coragem de perguntar, afinal, não tinha mais o direito de saber. senti frio. pensei em coisas. parei perplexo. não era mais a mesma. natural que não fosse, as coisas se vão. tudo nos falta. o que será que faltou a ela?"

sexta-feira, 9 de abril de 2010

querido anônimo

I.
desculpe-me,
eu quase não consigo me lembrar de quem eu fui.
sou outro agora e não me entendo...
me escondo em sombras ou num sorriso largo.
entendo pouco o que reflete a folha.

a mão esquerda que escreveu essas linhas,
simplórias, ingênuas e secretas
(as linhas de outra pessoa de caligrafia parecida),
não é mais a mão gelada que tenho agora.

II.
pensei em você como quem conta uma história para si mesmo.
invento fatos, relembros datas.
os olhos não me fogem da memória.
está tudo aqui, eu sei.

reli a esse estranho eternecido.
provei de sua euforia
e soube que fazia ele (à sua maneira)
o melhor possível.
(será que você diria o mesmo?)

tudo ainda, como deixei:
a sequência de números (que tocam um telefone)
a conversa, perdida entre vontades
o cavalo de tróia (pelo qual você entrou)
a pergunta, a resposta
a resposta...

III.
um punhado de anos e já não me acho dentro da minha cabeça.
estranho, me afasto...
enfim, sou finito. acabo e recomeço um milhão de vezes.
tenho lembranças,
acho que as tenho.
repasso-as todas,
tropeço em algumas.
quando foi?
onde?
com quem?
o dia exato?
me escondo em mim e deixo estar...

largo as folhas velhas.
sinto a melancolia pálida das coisas que se vão,
devagar,
(quase as toco)
e quando percebemos, já tudo nos falta.

terça-feira, 6 de abril de 2010

...e ainda

sabemos bem, você e eu, que, no fim, é sempre sobre adeus... so há o vazio, ausência tão real e viva. de doer o estômago!
beijos de febre, olhar em segredo, mãos, pernas, a pele clara, quente e desejosa de mim, seu corpo em confidência. seu cheiro! se tudo existiu um dia foi para que se soubesse que logo deixaria de exisitir. permaneceria assim: miragem, desejo, saudades... sombra pairando sobre meus pensamentos. todos os corpos são assim (só existem na lembrança)! sucessão de momentos fugazes, fugidios. tentamos retê-los em vão,sabemos ser impossível.
não lamento mais o triste destino de tudo que há e que logo mais deixa de haver. sou vazio, cabe em mim toda a ausência e mais. meu coração é do tamanho do mundo e ele se desfaz dia-a-dia. aceito, sereno, o acúmulo de tempo (coisa morta, que se quer viva), a recordação, entre bem-vinda e melancólica, que vez ou outra faça-se presente.
e afinal, a vida é ou foi?
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"Mas vem o tempo e a ideia do passado
visitar-te subitamente na curva de um jardim.
Vem a recordação, e te penetra
dentro de um cinema, subitamente.

"E as memórias escorrem do pescoço,
do paletó, da guerra, do arco-íris;
enroscam-se no sono e te perseguem,
à busca de pupila que as reflita.

"E depois das memórias vem o tempo
trazer novo sortimento de memórias,
até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi"


(Carlos Drummond de Andrade)

segunda-feira, 5 de abril de 2010

caindo em si

cachorra.
sangraste o meu dedão,
sugaste, deixaste-me no osso.
blefaste, mordeste o meu pescoço.
és louca se pensas que eu vou ser teu cão.
vem cá.
molhaste, mijaste-me o lençol.
bebeste meu último tostão,
fumaste meu único colchão.
fizeste de quem te atura um urinol.
vem cá.
surtaste, lançaste-me no poço.
sorriste, fudeste-me a razao.
gozaste, largaste-me no osso.
fizeste de mim o poste do teu cão.
vem cá.
surgiste, funesta aparição.
sumiste.
minhalma definhou.
voltaste,
canina assombração
fizeste de mim o traste que hoje sou.
traz cá minha ração.

(caindo em si/ mundo livre s.a.)