terça-feira, 28 de setembro de 2010

não quero morrer não quero
apodrecer no poema
que o cadáver de minhas tardes
não venha feder em tua manhã feliz
e o lume
que tua boca acenda acaso das palavras
- ainda que nascido da morte -
some-se
aos outros fogos do dia
aos barulhos da casa e da avenida
no presente veloz

(Arte Poética/ Ferreira Gullar)

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

I.

(...)

- hahahaha, e sabe o que ela me respondeu?: "eu não tenho cabelos vermelhos e o meu vestido não é amarelo. eu sou só uma menina invisível, deitada na grama invisível que a moça que não sabia desenhar, não desenhou".

- realmente... se eu bem me lembro acho que o cabelo é amarelo e o vestido vermelho (e os olhos são de assombração!). mas que importa? estamos todos num filme em preto e branco mesmo. 

- é, foda-se...

(e a conversa continou, mas eu desci antes do ponto final)

II.

"eu não tenho cabelos amarelos e o meu vestido não é invisível. eu sou só uma menina amarela, deitada na grama vermelha que a moça que não sabia desenhar, não desenhou."

"eu não tenho cabelos de grama e o meu vestido não é de moça. eu sou só um desenho deitado, amarelo no vermelho impossível que a moça invisível não desenhou."

"eu não tenho cabelo, nem vestido (nem grama, nem cor). sou só uma menina deitada no nada da moça inventada."


[é tudo sobre você
                                (- ela.
                                  - eu?
                                  - a outra.
                                  - nós todos.
                                  - ninguém.
                                  - enfim, basta.)]

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trecho em negrito roubado impiedosamente daqui:

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

teu corpo

você não sabe, não se deu conta ainda, mas deixei marcas por todo o teu corpo. furiosamente quis tê-lo (inteiro!) para mim, roubá-lo e no desespero de quem se afoga me derramei exagerado sobre ele. em minha insanidade tentei devorá-lo completamente; torná-lo meu abrigo, na fuga vã e desesperada do vazio que me ameaçava e que era eu próprio. sim, tentei habitá-lo, torná-lo minha parte mais segura. receptáculo de meus delírios e da minha descrença.

marcas indeléveis... mãos apertando muito as suas coxas e suas nádegas. minha saliva. o caminho percorrido por minha língua, da sua orelha até seu ombro. a marca dos meus dentes em seus dois peitos. meus lábios violentando os teus. o suspiro desentranhado (lívido, agressivo) entre os dentes.... e eu me liquefazia, sôfrego e extasiado na tua pele.

isso nunca se apagará... esfregue a sua pele o quanto quiser. peça para que façam igual, que façam melhor! haverá sempre um pouco de mim (da minha loucura) em você.

Ituverava
16/07
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e injetar cada pedaço do teu corpo em cada pedaço do meu corpo.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

seis horas da noite na cidade fria

seis horas da noite na cidade fria
todos como eu, nenhuma diferença,
tantos corpos, sapatos e guarda-chuvas
(mas não choveu hoje, nem choverá),
nenhuma alegria...

meus dois pés fincados sobre a capital
séculos de história me sufocam
ouço os fantasmas sussurrando
tudo é asfalto e remorso
e o que aquece é o motor à combustão.

nas minhas costas o peso do céu,
a herança que nos foi legada,
essa vida por deus cuspida,
a morte que nos será cobrada
ao dobrarmos a esquina

[ - mas não fui eu!
quando cá cheguei, assim estava...
no máximo olhei curioso
e escrevi uns versos]

a fumaça dignifica o homem,
o enche de si.
sei o que é respirar essa falta de ar todos os dias
pesa no nariz e no pulmão
comove
fede à saudade...
e os prédios são tristes e nem sabem

as coisas (todas elas)
choram pelas ruas
e eu nem posso entender por quê...
talvez por isso eu passe reto
e baixe a cabeça
talvez por isso eu fique quieto
e aperte o passo.

seis horas da manhã nesta cidade feia,
acredite minha cara,
você não é cinza sozinha.
meu olhos,
meu coração doído
(esmagado),
são cinza como você...

(que bem sei o que é respirar essa falta)

16/07
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"(...)


Já não,
já não que a lira tenho desatinada
e a voz enrouquecida
e não do canto
mas de ver que venho
falar de uma cidade endurecida,
falar de uma cidade poluída
falar de uma cidade
onde a vida é cada dia menos do que a vida:
asfalto asfalto asfalto
e mais assalto
(...)"

(F. Gullar)

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

meu amigo...

"Vamos beber uísque. vamos
beber cerveja preta e barata,
beber, gritar e morrer,
ou, quem sabe? beber apenas.

"Vamos xingar a mulher,
que está envenenando a vida
com seus olhos e suas mãos
e o corpo que tem dois seios
e tem um embigo também.
Meu amigo, vamos xingar
o corpo e tudo que é dele
e que nunca será alma."

(Carlos Drummond de Andrade)

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Estilhaçando e Recompondo

não vou lamentar um coração estilhaçado, perdido em muitos pedaços. não vou dizer que o prefiriria inteiro e indivisível (de ferro!), ainda que isso possa ser verdade. não farei isso agora (acho que isso eu já fiz demais)... quero antes olhá-lo, atento e curioso, na impossibilidade de esquecê-lo por completo, de deixá-lo por aí como uma coisa natural (a apodrecer naturalmente) e que a gente nem se dá conta .

é... tudo leva a crer que meu coração foi feito mesmo para estar por aí, espalhado por entre pessoas e lugares; para que eu o perca sempre e nunca tente encontrá-lo. por mais que às vezes seja essa minha vontade, não é comigo que ele deve estar, ainda que assim fosse mais fácil, mais seguro... e há cacos dele por todo o canto! frequentemente encontro pedaços no caminho do ônibus ou em fotos antigas, em lugares que nunca estive ou nos quais eu sempre estou e aquilo faz todo sentido pra mim! fico um tempão sem passar por aquela rua ou sem me lembrar daquela(s) pessoa(s) e quando o faço (por mero acaso ou não) percebo o quanto de mim ainda está lá... e acho que é por isso que sinto tanta saudade, tanta nostalgia: é o tanto de mim que espalho no mundo, e o meu coração é muito menor que o mundo...

pessoas que nem imaginam carregam pedaços (às vezes enormes!) dele. muitas vezes prefiro que não saibam mesmo, não vem ao caso. disfarçadamente coloco  no bolso do casaco ou na mochila e eles nem desconfiam que daquele momento em diante é um pedaço de mim (e do que há em mim de mais importante) que vai com eles, mesmo que não queiram, mesmo que preferissem que não fossem assim...

e assim eu procuro passar meus dias, estilhaçando e recompondo. desculpe-me, mas é que eu não sei fazer de outro jeito.
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"Amigos morrem,
as ruas morrem,
as casas morrem.
Os homens se amparam em retratos.
Ou no coração de outros homens."

(Ferreira Gullar)

ainda sobre isso aqui: http://carbonoeamoniaco.blogspot.com/2010/05/cardiologico.html