segunda-feira, 22 de junho de 2015

Uma coisa sobre Victor Hugo

"Pensar no prolongamento das coisas defuntas e no governo dos homens por embalsamamento, restaurar os dogmas em mau estado, tornar a dourar a caixa de relíquias, renovar os claustros, tornar a benzer relicários, reviver as superstições, reabastecer o fanatismo, colocar novos cabos nos sabres e nos aspersórios, reconstituir o monaquismo e o militarismo, crer na salvação da sociedade pela multiplicação dos parasitas, impor o passado ao presente, tudo isso parece estranho. No entanto, há teóricos para essas teorias. Esses teóricos, aliás pessoas de espírito, têm um procedimento bem simples, aplicam ao passado um reboco a que dão o nome de ordem social, direito divino, moral, família, respeito pelos antepassados, autoridade antiga, tradição santa, legitimidade, religião; e vão gritando: 'Vejam! Tomem isso, homens de bem!'. Essa lógica também era conhecida dos antigos. Cobriam de cal uma novilha preta, e diziam: "É branca"."

(HUGO, Victor; Os Miseráveis, p. 557)
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Impressionante como Victor Hugo escreveu essas linhas há mais de 150 anos e se encaixam PERFEITAMENTE na nossa realidade! Em pleno ano de 2015 (não que isso faça muita diferença) vemos crescer de maneira generalizada os brados acalorados pelo militarismo e, se não pelo monaquismo (vida em retiro, totalmente consagrada a Deus no silêncio, na penitência e no trabalho), pelo menos por algum tipo muito peculiar e ferrenho de "religiosidade" que tem na bancada evangélica do congresso nacional a sua mais alta e perigosa representação. Há uma tentativa recorrente e cada vez mais forte de se "impor o passado ao presente". Temos lido sobre isso quase todos os dias nas páginas que cobrem a política e o comportamente e não há nenhuma previsão de melhora.
Ainda mais certeira é a maneira como Victor Hugo analisa o procedimento desses "teóricos", que aplicam ao passado um reboco a que chamam de ORDEM SOCIAL, MORAL, FAMÍLIA, DIREITO DIVINO, exatamente como é feito hoje em dia. Depois vendem esse passado para o indignado "homem de bem", que sedento por "tornar a dourar a caixa de relíquias", atribui os males do mundo ao distanciamento de valores que se perderam. Defendem que "bom era antigamente" e clamam por mais moral, por mais família, por mais direito divino. Pegue qualquer um desses assuntos relevantes e polêmicos da atualidade (homofobia, aborto, tolerância religiosa, maioridade penal, descriminalização das drogas...) e constate que eles estão, afinal, pautados pelos "teóricos das coisas defuntas" através das ideologias citadas acima e de um tempo pra cá isso tem se tornado ainda mais perceptível e preocupante.


quarta-feira, 17 de junho de 2015

Sozinhos somos...

Com tanta delicadeza
Reordena minhas ideias
Muda a ordem dos capítulos
Me relê de trás pra frente

Traz sentido para as partes em que nem eu me entendo
Traz leveza para as tardes em que nem eu me suporto, não.

Há um risco inerente
Nesses corpos que se chocam
Mas você tira de letra
E corrige a minha rota

Talvez eu me perca no argumento
Ou descubra o infinito

Num rascunho inacabado de uma noite de novembro
Na obra definitiva que ainda não escrevemos, não, não...

Deixa o sim sair, assim, sereno.
O céu é seu, é o sol surgindo
Sei não há saudade que resista
Sozinhos somos a multidão

Tem aqui.
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Porque "trás pra frente" pode acabar sendo a ordem certa.
E entre o rascunho e a obra definitiva a gente vai perdendo os argumentos e descubrindo o infinito...

sábado, 13 de junho de 2015

Uma coisa sobre Arthur Schopenhauer

"Ele [Schopenhauer] entendeu que se pudermos reconhecer que nossa separação do universo é essencialmente uma ilusão (porque as vontade individuais e a Vontade do universo são uma única coisa) podemos descobrir uma empatia com o mundo e tudo o mais, e a bondade moral pode surgir de uma compaixão universal."

(O Livro da Filosofia)
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às vezes me perguntam no que eu acredito, metafisicamente falando. penso bastante sobre o assunto, mas acho que acredito mesmo em muito pouca coisa. não consigo deixar de perceber, aqui e ali, a limitação e a fragilidade dos grandes sistemas cosmológicos, o absurdo das explicações do universo e das revelações religiosas. principalmente não acredito nos homens que as professam.

mas se tem um raciocínio que me é particularmente instigante é o de Schopenhauer, acima. a ideia de que cada um de nós, enquanto indivíduos, estamos essencial e irreversivelmente ligados uns aos outros, e mais, ligados ao universo como um todo, me parece fazer bastante sentido. estamos todos no mesmo barco, não temos pra onde fugir, carregamos entre nós muito mais identidades do que diferenças. enquanto espécie, compartilhamos os mesmos vícios e virtudes em potencial e funcionamos de um jeito muito parecidos, através da vontade, diria Schopenhauer, essa força indefinida presente em tudo e que leva o homem a desejar e a buscar sempre mais.

o que são todas as tragédias humanas, lutas, guerras, injustiças, opressões, sofrimento, que não, de uma forma ou de outra a intolerância, a negação do outro e a busca quase irrefreável por algo mais? acreditamos que somos diferentes, que estamos mais certos/ mais iluminados/ mais escolhidos por deus e que devemos fazer valer essa diferença, nos auto afirmar e nos impor sobre o outro, exercer domínio, quando na verdade o que temos é uma origem, um destino e um fim basicamente comuns.

não que eu compre tais ideias necessariamente como Verdade absoluta, acho que se simplifica em alguns pontos e acaba beirando ao misticismo. Também não nego a condição propriamente conflituosa das relações humanas, mas acho, sim, que é essa uma interpretação muito menos belicosa e destrutiva, ainda que utópica, de nos esforçarmos para criar pontos de tolerância, empatia e identificação com o outro (seja seu vizinho, seja o País no outro lado do mundo) e que de alguma forma arrefeçam (ou escancarem quão ridícula e vazia é) essa gana humana pelo exercício de supremacia e dominação.