sábado, 20 de agosto de 2016

"Como me sinto? Como se colocassem dois olhos sobre a mesa e dissessem a mim, a mim que sou cego: isto é aquilo vê. Esta é a matéria que vê. Toco os dois olhos em cima da mesa. Lisos, tépidos ainda (arrancaram há pouco), gelatinosos. Mas não vejo o ver. Assim é o que sinto tentando materializar na narrativa a convulsão do meu espírito. E desbocado e cruel, manchado de tintas, essas pardas-escuras do não saber dizer, tento amputado, conhecer o passo, cego conhecer a luz, ausente de braços tento te abraçar."

(HILST, Hilda; Com os meus olhos de Cão, Globo. Pág. 47)


segunda-feira, 25 de julho de 2016

NO ASPRO

Queria a palavra sem alamares, sem
chatilenas, sem suspensórios, sem
talabartes, sem paramentos, sem diademas,
sem ademanes, sem colarinho.
Eu queria a palavra limpa de solene.
Limpa de soberba, limpa de melenas.
Eu queria ficar mais porcaria nas palavras.
Eu não queria colher nenhum pendão com elas.
Queria ser apenas relativo de águas.
Queria ser admirado pelos pássaros.
Eu queria sempre a palavra no áspero dela.

(Manoel de Barros, Poemas Rupestres)

terça-feira, 12 de julho de 2016

"Temos aí uma definição de literatura: a arte de provocar, com palavras, o gozo de fingir que se sofre. As palavras-chave desta definição são: palavras, gozo, fingir. Sofrer também é, mas devemos trocá-la por paixão, de forma a incluir a sensação que lhe parece oposta: paixão é tristeza e alegria, indiferentemente. Ou como dizia Aristóteles, 'tudo o que faz variar os juízos e de que se seguem sofrimento e prazer'. Um choro de Pixinguinha (1898-1973)  se intitula 'Sofres porque queres' - e é também boa definição da estesia literária.
Amar literatura é, pois, um vício: o do gozo fingido, ou do fingimento gozoso"

(SANTOS, Joel Rufino dos. Quem Ama Literatura não Estuda Literatura: Ensaios Indisciplinados. p. 13 e 14. Rocco, 2008)
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Quando eu abro esse livro é sempre para (re)aprender alguma coisa.
Para não esquecer do que de fato importa e é substancial. O que tem de fato nos movido nos últimos milênios. Não o intelectualismo grave e pedante, vazio e orgulhoso de si, mas a pulsão criativa, a necessidade de se ir além do (e através do) ser humano e imaginarmos outras vidas, tantas quanto possíveis.
"a poesia nasce do espanto" e nós renascemos através da poesia.

sábado, 9 de julho de 2016

a vitória nossa de cada dia

"Eu não digo que eu tenha muito, mas tenho ainda a procura intensa e uma esperança violenta.(...) E eu não choro, se for preciso eu grito, Lóri. Estou em plena luta e muito perto do que se chama de pobre vitória humana do que você, mas é vitória. Eu já poderia ter você com o meu corpo e minha alma. Esperarei nem que sejam anos que você também tenha corpo-alma para amar. Nós ainda somos moços, podemos perder algum tempo sem perder a vida inteira. Mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. não temos aceito o que não se entendo porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amos diga: tens medo. Temos organizado associação e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gafe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingênuos para não rimos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer 'pelo menos não fui tolo' e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia."

(LISPECTOR, Clarice; "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres")

sábado, 2 de julho de 2016

final de uma ode

'(...) Quisera dividir o corpo em heterônimos - medito aqui no chão, imóvel tóxico do tempo."

domingo, 15 de maio de 2016

Sexagésimo nono soneto de amor

TALVEZ NÃO SER É SER SEM QUE TU SEJAS,
sem que vás cortando o meio-dia
como uma flor azul, sem que caminhes
mais tarde pela névoa e os ladrilhos,

sem essa luz que levas na mão
que talvez outros não verão dourada,
que talvez ninguém soube que crescia
como a origem rubra da rosa,

SEM QUE SEJAS, ENFIM, SEM QUE VIESSES
BRUSCA, INCITANTE, CONHECER MINHA VIDA,
aragem de roseira, trigo de vento

E DESDE ENTÃO SOU PORQUE TU ÉS,
E DESDE ENTÃO ÉS, SOU E SOMOS
E POR AMOR SEREI, SERÁS, SEREMOS.

(NERUDA, Pablo in Cem Sonetos de Amor)
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quinta-feira, 21 de abril de 2016

"- Não se preocupe - me disse - É assim que deve ser. Os que fazem da objetividade uma religião mentem. Eles não querem ser objetivos, mentira: querem ser objetos, para salvar-se da dor humana."

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Ainda Galeano, que página a página bate e abraça mais.


sábado, 19 de março de 2016

d'Os Abraços

- "(...) talvez a gente seja as palavras que contam o que a gente é".

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 "Os poetas andavam em busca de palavras que não conheciam, e também buscavam palavras que conheciam e tinha perdido".

(o apego à palavra exata. o peso de não encontrá-la...)

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

o apego à palavra exata
o peso de não encontrá-la
(dois versos se foram e ainda estou longe...)
queria tanto...

a falta que faz
o que não se escreve
mês passado éramos jovens
havia tinta pra tudo

arrisco, mas não.
leio carlos, releio manoel
vejo notícia antiga e foto velha...
busco o dicionário,
morro na página 3

a máquina gira o mundo
eu não digo,
mas quero ser feliz

me escapa a ironia
escondida no desastre
de ser humano e crer

meio poema deixado em aberto
metalinguagem criando ferrugem
éramos jovens ontem à tarde
mas não... (queria tanto)

não fingirei que fui capaz
de encontrar.
nenhum verso me ampara,
o dia se arrasta
arrastado fluo também

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

"o pensamento não é neutro; ou ele é confirmação do estado das coisas, ou é crítico e transformador das subjetividades na direção de um pensamento lúcido entrelaçado a práticas lúcidas em tempos obscurantistas"

(TIBURI, Márcia. "Como Conversar Com Um Facista", Ed. Record)

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partindo do princípio, muito claro para mim, de que o pensamento não é neutro (pensar em algo é não pensar em todas as outras coisas, é estabelecer uma ordem para as ideias e para o mundo), podemos utilizar nossa capacidade cognitiva e reflexiva para transformar ou simplesmente reforçar o status quo. podemos ser meros replicadores do passado estabelecido ou propor e considerar novas posturas frente a eternas questões. 

porém, considerar-se questionador ou somente opor-se ao estado das coisas não basta. a crítica por si só é limitada em sua capacidade de transformar e induzir o processo dialético. tanto quanto possível, há que se buscar, enquanto sujeito, a lucidez teórica e prática como forma de combater o obscurantismo que sempre ronda muito perto todas as nossas formas de pensamento.

por que eu estou dizendo isso? não sei exatamente. um pouco talvez pelo desalento que me causa ver a vontade e a ação transformadora se deixarem seduzir tão facilmente pelo atalho das ideias pré-concebidas. me pergunto (e já sei a resposta) até que ponto é válido supor-se crítico quando o que se faz, na verdade, é substituir um pensamento obscurantista por outro, com a aparência um pouco mais moderninha...

acho que é isso. que venha 2016...