quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Algumas linha sobre "Maus"

 http://lounge.obviousmag.org/fugindo_do_lugarcomum/2014/08/os-ratos-sem-valor-de-maus.html.jpg





Li semana passada "Maus", uma HQ de inspiração biográfica, que conta a história de Vladek Spielgeman, um judeu sobrevivente do holocausto. Fiquei realmente chocado pelos detalhes de sua trajetória e de uma época histórica que, apesar de já retrada à exaustão, sempre me parece assustadoramente inverossímel. Difícil imaginar até que ponto chegou a negação da humanidade de alguns grupos.

O traço é simples, sempre em P&B e sem tantos detalhes, mas os quadros abusando do preto acabam por dar um ar sombrio às cenas, numa ambivalência entre o "infantil" do desenho e o grotesco da história contada. Os personagens são retratados como animais e coube aos judeus serem ratos, enquanto os nazistas são gatos. Um elemento simbólico quase pueril, mas que martelado do início ao fim da história serve pra expor ironicamente ainda mais a posição que os judeus ocupavam naquela absurda relação de dominação. Eram caçados como ratos e exterminados como ratos. 

A história em si começa quando o próprio Art Spielgeman, o autor, procura seu pai para que ele conte suas memórias sobre o holocausto, para um projeto de fazer desenhar um história que retratasse a época. Achei legal essa sacada metalinguista, já que, além da narrativa principal, há a todo momento a conversa entre pai e filho, a preocupação com a obra a ser feita e as relações cotidianas de uma vida normal. Serve inclusive como contraponto os momentos da conversa entre eles, entre um reparo na casa e uma caminhada pela rua e os tensos relatos de pessoas se escondendo em buracos sujos ou amontadas em campos de concentração.

Vladek não é nenhuma herói, só um homem com afiado senso de sobrevivência, inteligente e muito sortudo, que, muitas vezes através da barganha e de contatos, consegue superar uma adversidade de cada vez, pacientemente esperando algo melhorar. Ao longo da década de 30 e até o fim da II Guerra, a situação dos judeus na Polônia vai se gradativamente insustentável e o tempo todo vemos pessoas sendo perseguidas, desalojadas, humilhadas, violentadas e lentamente exterminadas. Mais do que isso, o que mais choca é que até a própria humanidade é negada. Matar judeus passa a se tornar uma tarefa burocrática e rotineira. É impressionante a quantidade de pessoas, entre familiares e amigos, que sucumbem ante ao nazismo de muitas formas diferentes e isso só ressalta a sorte e habilidade do protagonista em se manter vivo. Por outro lado, nos dias em que narra sua história, Vladek é o caracterísitco judeu sovina (e até mesmo racista), o que lhe dá ares mais humanos (sem forçar virtudes onde elas não existem) e que também chega a ser engraçado.

Conta positivamente também o comedimento quanto ao sentimentalismo e a dramaticidade. Acabaria sendo piegas e desnecessário abusar desses recursos para contar uma história que por si só já é pesada e de difícil assimilação. Não há tentativas de se emular heroísmo ou mesmo uma vitimização exagerada, assim como os próprios sentimentos (que sem dúvidas estavam muito latentes nas situações vividas) transparecem na medida certa.

A história contada do ponto de vista de pessoas comuns realça muito a insanidade e violência que vigoraram principalmente na Europa naquela época. O antisemitismo já fazia parte da realidade, mas de uma hora pra outra não se é ninguém mais do que um judeu (uma raça de "não-humanos"), e pouco a pouco não se tem mais direito à casa, profissão, família ou mesmo nome e não há muito o que fazer, já que essa violência constante e a negação vivida num dia a dia asfixiante fez ruir muito da capacidade de resistência desses seres humanos. Muitas vezes eu me perguntava o porquê deles não lutarem, sabendo que iam morrer de qualquer forma, mas creio que seja difícil (e o próprio Vladek diz) lutar quando se está esfacelado, com frio, fome, medo e tentando preservar o mínimo de sua própria dignidade.