quinta-feira, 21 de novembro de 2013

corpo cortado

corpo frágil,
                     corpo
faca na mão.
palavra, não lâmina
é o que fazia sofrer

penumbra
corpo e outro
                      corpo impassível,
a dor fina do corte
que eu mesmo inflingi

corpo abraçado
                          no corpo
o que restou,
é a porta pequena
desafiando a sair


pés decompostos
em passos 
perdidos
pedaços do corpo
fluindo

fim...


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"Nenhum metal pode perfurar o coração com tanta força quanto um ponto final colocado no lugar certo" (Isaac Babel)

terça-feira, 12 de novembro de 2013

ainda "a hora da estrela"...

"escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu morreria simbolicamente todos os dias. mas preparado  estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos. experimentei quase tudo, inclusive  a paixão e o seu desespero. e agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui."


Tava aqui anotado e eu quase rasgo e jogo fora, essa verdade lancinante, tormentosa e resignada, de quem escreve para fugir da morte (real e simbólica, que afinal é quase a mesma) e o faz sem muita convicção. 
O tédio de sermos isso e não aquilo e aquiloutro e todo o resto. Essa vontade que às vezes bate de sermos o que não somos e que acaba transbordando pro papel...


segunda-feira, 4 de novembro de 2013

algumas linhas sobre "a hora da estrela"

li pela primeira vez em 2004 para o vestibular. sem tanta atenção, é verdade, naquela ânsia de obter somente a compreensão instrumental para acertar alguma questão que eventualmente caísse na prova. uma pena, já que um livro desses não deveria ser encarado dessa forma rasa (assim como tantos outros que se banalizam totalmente quando passam a figurar como leitura obrigatória). 

injustiça reparada quase dez anos depois. tive a oportunidade de relê-lo como se deve e com a maturação conseguida através da década que passou (e que surpreendentemente fez toda a diferença pra mim enquanto leitor).

como sempre Clarice surge arrebatadora. vibrante e ousada na sua forma de escrever, com digressões inquietantes, em momentos de quase delírio... essa é sua derradeira obra (morrera no mesmo ano da publicação, 1977) e é o relato, a confissão de existência de uma moça que não existia. ou que até existia, posto que era matéria nesse mundo e respirava, mas que o fazia muito acanhadamente, desconcertada, quase "pedindo desculpa por ocupar espaço". Macabéa, a nordestina que sabe-se lá por quê migrou para o Rio de Janeiro, tinha uma vida miserável e nem disso se dava conta. simplesmente ia "vivendo à toa", porque era assim que era, sem nenhum tipo de esperança, sem viço, sem alegria ou tristeza. num "limbo impessoal". moça magrinha, murcha, de corpo "cariado" e encardido e cabelos parcos, com um cheiro "murrinhento", que ninguém queria.

é assim que nos apresenta a protagonista o narrador, Rodrigo S. M., que também quase se desculpa por nos trazer uma narrativa tão banal. durante todo o livro, o autor expõe sua confusão de sentimentos em relação à Macabéa, ao ato de escrever e à própria vida. sente desprezo e um certo tipo de afeto pela sua personagem. gostaria que ela de alguma forma demonstrasse fibra. "Ah pudesse eu pegar Macabé, dar-lhe um bom banho, um prato de sopa quente, um beijo na testa enquanto a cobria com um cobertor e fazer que quando ela acordasse encontrasse simplesmente o grande luxo de viver". justifica-se o tempo todo, confessa ao leitor a inadequação que vê em sua história, mas admite para si mesmo que não pode ser de outro jeito:  "escrevo, por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias".

somente seu trabalho de datilógrafa faz Macabéa ser alguém. poucas coisas a conectam ao mundo, como suas companheiras de quarto, a rádio que ouve todas as noites e os passeios dominicais no cais do porto. é sozinha no mundo e não se dá conta. não tem nada e nem ninguém e não pensa nisso ("aprendeu que as coisas são dos outros"). um dia ela arranja um namorado - olímpico - também um migrante no rio de janeiro, que ao contrário de macabéa, é ambicioso, quer ser "alguém na vida".  mas esse namoro morno não leva a nada. olímpico termina com ela ("você, macabéa, é um cabelo na sopa. não dá vontade de comer") pra ficar com sua colega Glória, carioca, loira (ainda que oxigenada) e bem alimentada, o que fazia dela "material de boa qualidade". 

num ápice de iniciativa, até então estranha a ela, Macabéa vai a uma cartomante, indicada por Glória (penalizada por ter roubado o namorado da outra). a sorte que ela recebe das cartas a deixa num estado novo de expectativa e alegria. pela primeira tinha um destino, tinha esperança de uma vida melhor! porém seu clímax na vida, a hora da estrela, foi ser atropelada logo ao sair da cartomante. foi a primeira vez que a viram de fato, que a olharam. no abraço da morte ela pode finalmente "ser".

considero o ponto forte da história a relação intensa do narrador com sua personagem. o conflito, o afeto, a declarada exasperação que Macabéa causa em Rodrigo ("Macabéa me matou"). a intensa necessidade de botar pra fora a história dessa moça igual a tantas outras. os caminhos tortuosos pelos quais o "autor" segue e nos conduz, escancarando sua desilusão, suas dúvidas e a descrença no seu próprio ofício de escritor(a).