quarta-feira, 30 de outubro de 2013

extermínio de mendigos, censura e pena de morte hoje...

"Mendigo não tem que votar. Mendigo não faz nada na vida. Ele não tem que tomar atitude nenhuma. Aliás, eu acho que deveria até virar ração para peixe".
Uma declaração como essa me arrepia, me indigna, me desilude (ainda mais). Não só por vir de um parlamentar, membro de um partido político e representante de toda a população de um município. Mas porque, de certa forma, é assim que pensa uma parte considerável dos brasileiros. Tudo bem que o vereador de Piraí (RJ) teve que se superar em burrice e coragem para fazer um discurso que é conservador, totalitário e claramente criminoso (afinal é um político dizendo que pessoas que moram na rua deve morrer), mas eu duvido que ele não tenha ganho a admiração de muitos que tomaram conhecimento de suas ideias "inovadoras" no tratamento às pessoas em situação de rua. 

Primeiro, ele diz que mendigo não tem que votar. Ou seja, ao morar na rua (por qualquer que seja o motivo) todo cidadão brasileiro deveria ter seus direitos políticos negados. 

Segundo, presume-se e afirma-se, numa lógica simplista e nojenta, que se está na rua é porque é vagabundo, não faz nada na vida, deliberadamente. Esse é um raciocínio falso, raso, hipócrita e cínico.

Terceiro, e o mais grave, defende-se que pessoas nessa condição devam ser mortas, exterminadas sumariamente, por serem indesejáveis. 

Nega-se, assim todos os direitos de uma parte dos seres humanos deste país. Não têm o direito de serem cidadãos e nem mesmo de existir. É de um obscurantismo e de uma intolerância atroz. Mais do que isso, não se discute em nenhum momento a questão dos "mendigos" como um problema social crônico, fruto direto da miséria e da desigualdade pornográfica que sempre existiu no Brasil. Não se precisa ser muito esperto pra entender que sair das ruas não é só questão de um "vai trabalhar, vagabundo" (bom, talvez um pouco mais esperto do que o nobre vereador em pauta). Existe um intrincado ciclo vicioso da miséria que se reproduz continuamente e do qual muitas pessoas não conseguem sair facilmente.

Pode não parecer, mas estamos muito próximos de uma lógica bem sucedida no regime nazista e que costuma contar com a calorosa aprovação das massas, desejosas de um mundo "mais seguro para os cidadãos de bem". Nas palavras do historiador Robert Gellately: 
"O regime [nazista] se vangloriava de sua nova abordagem contra criminosos reincidentes, alcoólatras crônicos, criminosos sexuais, desempregados e mendigos. Hitler prometeu 'limpar as ruas', e a maioria das pessoas aprovou a medida. Algumas acreditavam de fato no Hitler e no nazismo".
Ou seja, essa ideia de limpar as ruas do lixo social não é nova e nos aproxima muito do que existiu de pior em matéria de ideais políticos e sociais. Quando um vereador a expõe com todas as letras na tribuna de uma casa legislativa ele está basicamente reforçando uma mentalidade da qual uma parte significante da população se identifica e diante da qual não podemos de maneira nenhuma nos calar.



P.S.: Continuando seu discurso absurdo e desatroso, o mesmo vereador ainda defendeu a pena de morte, argumentando que, se o criminoso soubesse que iria morrer ele ia pensar duas vezes antes de cometer seus crimes, e a censura, em suas palavras: “Fim da censura. Eu acho isso ruim. Tem que ter censura. Nas propagandas de filmes e de novelas, passa gente transando escandalosamente na frente de criança. Eu acho ridículo acabar com a censura."


 

terça-feira, 29 de outubro de 2013

algumas linhas sobre ''a lista de schindler"

depois de muitos anos na minha lista de filmes a assistir, finalmente tive a oportunidade de encarar as mais de 3 horas de duração de "a lista de schindler". 

antes de tudo tenho que dizer que, apesar de ser longo, ele transcorre de maneira muito suave e agradável, prendendo a atenção do espectador e mantendo um bom ritmo durante todo o filme. não posso dizer que tenha havido alguma passagem que eu considerasse desnecessária ou enfadonha. cenas de extrema degradação e violência são constrastadas com a opulência dos oficiais nazistas, numa fotografia em preto e branco belíssima, que acentua a crueza e o horror sempre presentes.

Liam Neeson está ótimo no papel de Oskar Schindler, um personagem sedutor e cheio de si, mas para mim quem rouba a cena é o contador judeu Itzak Stern, que mesmo ciente da situação desesperadora em que se encontra, consegue manter-se numa certa posição de dignidade, sóbrio e comedido, conquistando a confiança e admiração de Schindler.

a história mantem-se o tempo todo interessante, contada com maestria e que consegue, sem dúvida sensibilizar e chocar. conta, em linhas bem gerais, a história de Oskar Schindler, empresário alemão e membro do partido nazista que, com o intuíto de ganhar muito dinheiro, se propõe a empregar mão de obra judia (pela qual se pagava menos) em sua fábrica. o que a princípio era somente um "aproveitar-se da situação" (que envolvia contar com investimento de judeus e conquistar a simpatia do governo, para contar com vantajosos contratos), acaba ganhando contornos humanitários, quando trabalhar na fábrica de Schindler torna-se uma segurança para centenas de judeus que viam dia a dia suas condições de vida se precarizar. mesmo que não compartilhando o sentimento anti-semita dos outros nazistas, o empresário está mais preocupado em maximizar seus lucros, mas acaba tomando partido na tentativa de salvar o máximo possível de judeus e, graças a sua influência com os oficiais nazistas e despendendo a fortuna que conseguiu juntar, ele suborna o comandante do campo de concentração, para que os trabalhadores de sua fábrica pudessem ser levados para Tchecoslováquia e não para Auschwitz, para trabalharem numa fábrica munições. Mesmo correndo o risco de contar uma parte que eu não deveria da história, chega a ser engraçado quando ficamos sabendo que nos sete meses em que a fábrica funcionou ela foi (propositalmente) um exemplo de ineficiência, na qual  Schindler gastou todo o restante de sua recem adquirida fortuna.

o que se vê na tela, e o que mais me espantou, é a crescente negação da humanidade dos judeus. mais do que um grupo a ser exterminado, eles perdem completamente sua condição de seres humanos, passando as mais degradantes humilhações, contra as quais mal podiam resistir. tornam-se um número, seres indesejáveis, desprezíveis, incomôdos na sua existência e na sua morte, contra os quais a única preocupação passou a ser como eliminá-los da formas mais eficaz. fica no ar a pergunta, difícil de responder, de como é possível que se possa negar, com tanta convicção e naturalidade os direitos mais básicos de dignidade a parte do seres humanos. a despeito do anti-semitismo histórico e sempre presente, qual é a lógica que opera num regime que em poucos anos consegue convencer todo um país de que faz-se necessário que uma parte enorme das pessoas devam deixar de existir, deixar de ser reconhecidas como pessoas, num processo que desarma e subjulga de tal forma as vítimas, que elas se veem sem condição de resistir ou reagir, submetendo-se totalmente ao seu algoz.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

a felicidade como um ventre...

"Adorno observa que não é possível estabelecer, com a felicidade, uma relação de posse. Não é certo dizer 'temos felicidade', 'somos donos de uma coisa chamada felicidade'. Não a temos, diz Adorno, 'mas sim estamos dentro dela'.
"Ele continua: 'a felicidade é sentir-se envolvido, é uma reminiscência do ventre materno. Por isso, quem é feliz nunca pode saber que o é. Para dar-se conta da felicidade seria necessário sair de dentro dela. Quem afirma ser feliz está mentindo, e, ao invocar a felicidade, peca contra ela. Só quem afirma: 'fui feliz' é fiel à felicidade. A única relação da consciência com a felicidade é a da gratidão: nisto consiste sua incomparável dignidade".

( COELHO, Marcelo. A dificuldade de ser feliz in Tempo Medido, São Paulo: Publifolha, 2007)
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 sabido esse adorno...

sempre pensei mesmo nessa tal de felicidade como frágil e incerta, algo que se dissipa no ar ao ser pronunciado.
parar pra pensar, procurá-la, definí-la, apreendê-la, já seria uma forma de renunciar a ela, colocar-se "do lado de fora". 
como quando sonhamos, prestar atenção na sua existência é não vivenciá-la...

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

algumas linhas sobre o "guia politicamente incorreto da história do mundo"

esse novo "guia politicamente incorreto" não foge aos dois primeiros: se empenha em bater num suposto monopólio esquerdista do pensamento e traz um catado de temas desde a antiguidade até o mundo contemporâneo. muitas coisas servem como curiosidades, não sendo tratadas muito a fundo e por vezes misturando fatos com opiniões pessoais (o que pode ser perigoso).

assim como os outros livros que tratam de temas do brasil e da américa latina, é impossível lê-lo indiferente. o objetivo é declaradamente incomodar, fazer barulho e nesse objetivo o livro é feliz. claro que tem falhas graves, é provocativo e para isso arrisca-se a raciocínios simplificados e interpretações questionáveis dos fatos. ao discordar de uma visão histórica supostamente estabelecida e majoritária ele comete o mesmo erro de ser tendencioso. é como se o que foi dito até então (o que por si só já é uma simplificação, já que a própria historigrafia é ampla e diversificada) fosse o "errado" e o que ele diz agora seja o "certo". além disso me incomodou o fato de tentar escrever de forma descolada e engraçadinha, como se estivesse falando com pessoas que têm dificuldade de entender.

se tem uma mensagem que esse livro traz (pelo menos implicitamente) e que eu não posso deixar de concordar é a de que a História é muito mais complexa do que nós aprendemos na escola. eu não saberia fazer um julgamento acurado sobre Nero ou Gandhi, por exemplo, mas tenho a convicção de que foram personalidades grandiosas, cheias de nuances, muito mais do que nos acostumamos a ver depois, num discurso consolidado. Não é possível e nem desejável colocá-los de antemão no lado dos mocinhos ou dos bandidos. até porque a própria maneira como os fatos chegam até nós está totalmente imbricada a quem escreve e ao espírito da época em que se escreve e, sendo impossível fugir totalmente disso, temos que nos posicionar de maneira cautelosa em relação ao todo. é interessante perceber essa tendência, ao saber que a maneira como nos acostumamos a ver os samurais hoje em dia é uma forma romanceada como se passou a retratar a época, meio que num movimento de nostalgia e saudosismo, um bom tempo depois. assim também, creio realmente que a idade média foi muito mais do que uma época de obscurantismo e que o facismo enquanto movimento político não foi simplesmente o resultado de mentes monstruosas arquitentando a dominação mundial. a história é sempre muito mais do que nos dizem sobre ela...

porém Narloch deixa isso claro ao mostrar o contraste entre opiniões destoantes (a dele e a dos "politicamente corretos") e não sendo um analista ponderado (até porque não creio que tenha sido esse seu objetivo). assim, ao dizer que o capitalismo foi a melhor coisa que poderia acontecer aos pobres (sim, ele fala isso!) ele deixa exposto que se isso não é verdadeiro (e só uma mente grosseira poderia corroborar tal afirmação), ao mesmo tempo coloca algumas pulgas atrás da orelha, ao tentarmos ser mais honestos e avaliar o que aconteceu na revolução indústrial como o acúmulo e a convergência de uma série de acontecimentos anteriores que culminaram num novo sistema produtivo e de organização social. politicamente pode-se posicionar em relação a essa forma de interação humana como "contra" ou "a favor", "feio" ou "bonito" mas ao buscarmos uma análise histórica abrangente temos que ir muito além. entre o preto e branco há uma infinidade de outras tonalidades às quais o historiador deve-se atentar ao compor um quadro. o autor faça isso, muito pelo contrário, mas meio que num processo dialético, ao negar algumas supostas verdades ele pelo menos deixa à mostra a fragilidade com que os discursos são produzidos.

enfim, leiam se os temas abordados interessarem, mas tenham cuidado para não dar mais legitimidade ao livro do que ele merece.

não saberia ser mais claro sobre minhas opinões, então prefiro resumí-las entre os pontos positivos e negativos:

PRÓS

busca oxigenar e trazer outros pontos de vista a fatos do passado. mesmo que passíveis de refutação, pelo menos nos fazem questionar. tira do lugar comum e da acomodação de uma verdade estabelecida.

ao dizer coisas não comumente ditas sobre esses fatos, nos incentiva a problematizar e vê-los de uma maneira mais humana e complexa.


é extramente instigante, capta a atenção mesmo quando escreve coisas absurdas e a partir disso me obriga a rever e reforçar  meus posicionamentos. 
CONTRAS

na ânsia de ser polêmico e procativo, acaba defendendo pontos de vista de maneira totalmente simplificada e precipitada. assim, incorre no mesmo erro de que acusa a história majoritária dos livros escolares ao "ideologizar" a informação.
não dá pra dar crédito a muita coisa que ele defende por que percebe-se uma argumentação frágil e descontextualizada. me parece que não entende de muita coisa que diz.
tenta ser engraçadinho e raso na maneira de escrever, como se precisasse "facilitar"a comunicação para ser entendido. pelo menos pra mim isso cansa e deixa o texto mais pobre (às vezes lembra a galera que escreve comentários na internet).