sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

diagnóstico

"bem, senhor fulano de tal, tenho por dever informá-lo que analisamos detidamente todo o seu histórico, suas declarações anteriores, o testemunho de pessoas de vosso convívio, os arquivos contidos em nosso bancos de dados e podemos afirmar com toda a certeza que o senhor é um grandessíssimo idiota."


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"mas, não há nada que eu possa fazer!?"
"não senhor, sinto muito... o que está feito, está feito"

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

daquela noite em que tocava "moose the mooche"

era quase madrugada e isso não importava,
nenhum barulho lá fora, a não ser um carro ou outro passando
da janela, uma grande lua branca testemunhava minha decadência
aquela casa era minha, os meus tijolos, minhas paredes, mas eu era um estranho
talvez os pensamentos não fossem meus...
e apesar de haver um indefinível gosto amargo na minha boca,
àquela altura eu não me lembrava de coisa alguma

charlie parker improvisava ensandecido em seu sax
e isso pra mim bastava no momento.
concentrei-me na sucessão vertiginosa de notas
as imaginei rodopiando pelo ar
tudo era som, afinal.

"talvez eu tivesse sido um bom músico de jazz;
tocaria com os melhores e morreria aos 34".
"sim", respondeu um interlocutor imaginário,
talvez tivesse sido um bom músico,
ou escritor, desenhista, cientista, ou qualquer coisa...
mas não poderia ser melhor homem-medíocre,
para isso você tem talento inigualável.

espantei-me com aquela resposta,
fiz um esforço para que a música que ecoava
abafasse qualquer tentativa daquela voz de continuar
"afinal, tudo é som".
pelo menos naquela noite deveria ser.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Apologia

Cheirava e beijava todos os seus poros
todos os seus orifícios
decorei em tempo recorde
as maneiras com que ficava arrepiada

girava e girava-a sem descanso
puxava seus cabelos
descompasso
passo a passo

fiz um pedido

“me morde”
ela se fez de desentendida
abriu os olhos

percebi que se passou algo
comigo e com ela
não fomos os mesmos desde então
nunca mais

http://bassbassbass.blogspot.com/2011/06/apologia.html
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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

"o socialismo para mim não é o nome de um tipo particular de sociedade. é, sim, exatamente como o postulado de Marx de justiça social, uma dor aguda e constante de consciência que nos impulsiona a corrigir ou remoer variedades sucessivas de injustiça. não acredito mais na possibilidade (e até no desejo) de uma 'sociedade perfeita', mas acredito numa 'boa sociedade', definida como a sociedade que recrimina sem cessar por não ser suficientemente boa e não estar fazendo o suficiente para se tornar melhor."

(caderno Mais! Folha de S. Paulo, 19 de outubro de 2003)

sim, claro! pura ilusão (uma cegueira engessante) acreditar em sociedades perfeitas, isso só nos leva à arrogância e ao fundamentalismo ortodoxo. temos que ser realistas o bastante para admitir que elas não existem e que o processo que nos leva a melhorias no bem-estar de todos deve ser constante. a justiça social não virá de manuais, não há receita pronta. devemos, isso sim, estar em alerta o tempo todo.

esse fragmento tava aqui perdido como rascunho há alguns meses, mas ao reler senti vontade de postar. afinal parte de um pressuposto simples, mas que faz toda a diferença. talvez deveríamos começar aceitando que somos falhos e limitados, individual e coletivamente, na nossa capacidade de tornar as coisas melhores, mas que justamente isso nos torne mais empenhados em  melhorar e lapidar a reflexão sobre o que queremos e a nossa auto-crítica.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Terras das Oportunidades parte 2 - Manderlay

manderlay segue a proposta estética de dogville em sua quase ausência de cenário (lembrando muito nesse ponto uma peça teatral) e segue a história do anterior basicamente de onde ela parou. ainda estão presentes a mesma maneira de divisão do filme por capítulos e um narrador irônico que acompanha todo o desenrolar da história. um ponto negativo para mim foi mudança da atriz da personagem .
dessa vez o tema do qual se parte é mais específico (a escravidão nos EUA) e talvez por isso mesmo menos impactante inicialmente, apesar de podermos expandir seus resultados e nos surpreender com eles.
após sair de dogville, grace se depara com uma fazenda na qual a escravidão dos negros ainda perdura, 70 anos após sua abolição. ela se indigna com aquilo e, com a morte da senhora dona dos escravos ela os declara livres. receando que não soubessem o que fazer com aquela liberdade recém conquistada e convicta de que poderia fazer algo por eles, ela acaba decidindo ficar no lugar para ensiná-los a se auto-organizarem e cultivarem sua liberdade como algo positivo.
claro que nem tudo sai como ela planeja, uma série de problemas surgem na comunidade quando a relação senhor e escravo é rompida. o que nos leva a pensar que, por mais que eles estivessem numa condição anteriormente de sujeição, ainda assim havia uma lógica social em funcionamento, uma acomodação na qual ambos os lados estavam inseridos. podemos perceber de maneira clara o quanto uma relação de dominação, a partir da interiorização do status quo, pode ser dupla, desejada por ambos. E não só desejada, já que ela só pode se manter através da aceitação geral. grace só percebe isso após muito tempo, o que nos sugere a ingenuidade ou ineficiência de sua ideia de liberdade a qualquer preço, antes da emancipação do pensamento.
podemos expandir as conclusões que o tema traz e refletir justamente sobre como funcionam a dinâmica entre dominantes e dominados em qualquer relação social (seja entre classes inteiras ou entre indivíduos). a partir do momento em que o mundo como nós o conhecemos faz todo sentido e molda profundamente a identidade dos seres humanos e a maneira como devem se relacionar, fica extremamente difícil sair daquela condição. e isso é que grace e nós descobrimos de maneira amarga no decorrer do filme. a escravidão é desejável para aquelas pessoas na medida em que tal condição os insere no mundo a partir de uma ideologia já conhecida e tornada legítima. é o oprimido que muitas vezes que ratifica e cristaliza sua condição. quase como que dizendo que a vida é mais fácil de ser vivida daquela maneira (acho até que falam algo de ser mais fácil viver culpando os outros pelo mal do que a si mesmo). e perder a senhora a quem deviam obediência os desnorteia e os faz desejarem tentar recuperar a situação perdida. tanto é que eles acabam usando a assembléia e votação (instrumentos democráticos que grace se esforça para introduzir na comunidade) para escolherem quem seria sua nova senhora, responsável para manter a lei conforme sempre foi.