sexta-feira, 20 de março de 2015

Na Enseada de Botafogo

Como estou só: Afago casas tortas,
Falo com o mar na rua suja...
Nu e liberto levo o vento
No ombro de losangos amarelos.

Ser menino aos trinta anos, que desgraça
Nesta borda de mar de Botafogo!
Que vontade de chorar pelos mendigos!
Que vontade de voltar para a fazenda!

Por que deixam um menino que é do mato
Amar o mar com tanta violência?
 
(Manoel de Barros)
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"que desgraça... bem sei"

quarta-feira, 18 de março de 2015

Meus centavos sobre as manifestações de domingo


Domingo, dia 15/03,  houve manifestação em diversas cidades do Brasil para protestar contra o governo federal e a corrupção (do PT) e que reuniram, segundo os organizadores, 3 milhões de pessoas e segundo as PMs 2,4 milhões. Não tenho motivos para acreditar em tais números, mas reconheço que muitas pessoas foram às ruas para reclamar, em mais um episódio da recente crise institucional e de insatisfação com o governo Dilma. Abaixo algumas considerações sobre o tema:

1. Acho espantoso como o PT e o governo como um todo têm conseguido se auto-sabotar. Têm demonstrado falta de habilidade em ouvir e negociar, se isolando cada vez mais, causando estremecimento na "base aliada", desmobilizando sua militância e simpatizantes e dando muita munição para a oposição (inclusive a midiática) com declarações e medidas pouco inteligentes, além da falta de diálogo e de habilidade política. Conseguiu-se erigir uma enorme antipatia pela presidente e seu partido que, ainda que confusa, baseada em preconceitos e insuflada pela mídia, é, em grande parte fruto dos próprios feitos petistas.

2. Pontuada a inegável responsabilidade do PT sobre a atual situação econômica, política e social do País, quero destacar que uma parcela da população foi às ruas no domingo passado após uma descarada e calorosa propaganda da grande midia, que fez questão de vender os protestos da forma mais simpática possível, em tom convocatório. Assisti ao esporte espetacular por meia hora na manhã de domingo e ouvi mais sobre as manifestações do que sobre esporte. A própria maneira como se referiam a elas durante todo o dia tinha o claro objetivo de convidar as pessoas à participarem.

3. Considero que manifestações populares são justas, salutares e necessárias para qualquer regime minimamente democrática. Todo tipo de pessoa pode e deve sair às ruas para dar voz às suas opiniões, por mais que eu me contorça por dentro ao tomar conhecimento de seu conteúdo. Afinal, liberdade para se expressar é fácil, difícil mesmo é liberdade para o outro, que está no lado oposto, poder dizer o que pensa (ou às vezes que não pensa). 

4. Por outro lado, também acho justo, necessário e salutar que discordemos (até veementemente) das opiniões alheias. Se há o direito de expressar, também há o de discordar e contra-argumentar. Ambos se complementam. E é dessa forma que eu me coloco diante das manifestações que ocorreram domingo. Claro que eu acho que o governo precisa ser pressionado, principalmente diante das graves denúncias de corrupção e também quanto às medidas que vêm sendo adotadas, mas não consigo me identificar nem um pouco com um movimento daqueles, que reuniu saudosos da ditadura ("intervenção militar constitucional", hahaha), golpistas e conservadores em geral, numa histeria coletiva raivosa e desinformada. A pauta que se colocava ali, ainda que pulverizada e difusa, não passa nem perto da minha. Pior ainda, quando boçais como Silas Malafaia e Bolsonaro convocam a população para uma manifestação é sinal de que eu definitivamente NÃO tenho nada pra fazer ali...

5. Na MÉDIA, estavam presentes pessoas mais brancas, mais ricas, mais velhas e, principalmente, muito mais conservadoras, expondo o que eu considero um patriotismo ufanista, constrangedor e agressivo que só reforça a polarização e a falta de diálogo. A oposição minimamente coerente e articulada era irrisória diante de tantos "defensores da pátria" com as cores da bandeira e camisas da CBF, segurando faixas e entoando gritos ofensivos e desconexos. A impressão que dava ali é que pouco importava a corrupção em si, o importante era atacar o PT, por ser o PT e nada mais. Aqui em SP não se viu nenhuma plaquinha contra o governo do estado ou contra qualquer outro partido. Todos os males do Brasil parecem ser culpa do PT, numa associação infantilizada. Quando colocamos as coisas desse jeito estamos livrando a cara de todos os outros e virando as costas pr'aquilo que realmente importa.

6. Especificamente sobre os delirantes defensores de um regime militar, não preciso dizer o quão ridícula e ultrajante me soa essa ideia. Pior ainda quando clamada pelo "povo" supostamente "ofendido" pelo "mar de lama" que se tornou a política nacional, numa demonstração de que se entende pouco e se fala muito quando o assunto é política. Sem querer soar clichê, mas um governo que censura, cassa adversários, tortura, mata, aliena a população, nunca será a resposta para os nossos problemas. Sim, eu até acredito que a maioria dos presentes não defendia tal bandeira, mas acho estranho não se incomodarem de dar força e visibilidade a esse pessoal...

7. Quanto aos pedidos de impeachment, os considero despropositados e voltados simplesmente para desestabilizar o governo. Se a intenção é melhorar/ moralizar a forma de se fazer política no Brasil, não consigo ver esse caminho como minimamente razoável. Soa como raivinha juvenil ao se focar excessivamente no PT e na Dilma e livrar a barra de todos os outros. Isso me preocupa, pois distorce a realidade, fragiliza ainda mais nossa democracia, acirra os ânimos e demonstra uma preguiça horrível de se pensar um pouco mais além. Simplesmente se contenta em repetir à exaustão que a culpa é do PT e pronto, já temos a bruxa para queimar na fogueira. Porém, veja que ironia: Em outras épocas era o PT (o "arauto" da honestidade e da moralidade na política) que pedia o impeachment do FHC e hoje tem que ouvir tal clamor de cabeça baixa e sem muitos argumentos em sua defesa.

8. Os nossos problemas enquanto Estado e sociedade são muito maiores e mais antigos, não começam e nem terminam na era PT como querem fazer acreditar os nobres defensores da pátria. Diz respeito à nossa cultura política e tanto ao sistema eleitoral quanto ao sistema político. Envolve todos os partidos e a forma como eles se relacionam com o poder.  O financiamento privado de campanha, por exemplo, é um piada em todos os sentidos. Não há NENHUMA justificativa para empresas """doando""" milhões de reais para a campanha de políticos, que culminarão em relação escusas entre os futuros eleitos e essas empresas. A quantidade de partidos e a forma como eles chegam ao poder também é falha e precisa ser mudada urgentemente (a famosa reforma política), pois reforçam o clientelismo, o fisiologismo e a troca de favores.

9. Finalizando, acho que não preciso dizer que sei que o governo atual tem um caminhão de problemas e que, a despeito da atuação parcial da mídia, quero que todos os responsáveis por maus feitos nessa investigação e em outras, sejam duramente responsabilizados e inclusive que o PT sofra o que tiver que sofrer no que tange à sua credibilidade frente ao eleitor. Lembro que o Lula falou no início do seu governo, que o PT não poderia errar. Pois bem, erraram feio e vão ter que pagar a conta...

domingo, 15 de março de 2015

a canção de outros tempos

ouça aqui: https://soundcloud.com/carbonoeamoniaco/a-cancao-de-outros-tempos

por que você não passa aqui?
eu tenho um vinho bom
e podemos conversar
sobre tanta coisa

eu sei que você ri de mim
quando eu começo a gaguejar
por não saber o que dizer
e quase nunca sei

você me pede pra contar
o que eu andei fazendo todo esse tempo
ah, eu desvio o olhar
acho que prefere não saber

você me pede pra cantar
as canções de outros tempos
mas eu já não sou o mesmo
e nunca lembro a letra

por que você não fica mais?
eu passo um café
e a gente espera o sol nascer
sentado na varanda

gosto de te ver assim,
sob a luz branca da manhã
emoldurando o seu rosto
enquanto rói as unhas

e me pede pra contar
o que eu andei fazendo todo esse tempo
você percebe num olhar
acho que não preciso te dizer

você me pede pra cantar
as canções de outros tempo
mas eu já não sou o mesmo
e nunca lembro o refrão
que te pedia pra ficar
um pouco mais que a vida inteira
você diz não acreditar no que se diz numa canção
então esqueça os três minutos
que eu te conto o que passou
e a gente inventa o que será

terça-feira, 3 de março de 2015

Algumas linhas sobre "Trovões a me atingir"

Demorei um pouco pra ter uma opinião mais consolidada sobre o novo álbum do Jair Naves, "Trovões a Me Atingir". Confesso que numa primeira ouvida não me pareceu lá grande coisa, no máximo uma boa continuidade do anterior. Porém, é o tipo de álbum que não se pega de primeira e segue num crescente. Foi preciso tempo para apreciar os pequenos e inúmeros detalhes que o constroi. 

Primeiro de tudo, o trabalho me soou muito coeso e bem acabado. As harmonias e os arranjos estão excelentes, uma combinação bem dilapidada de diversas sonoridades. A ponto de me pegar esperando, por exemplo, o teclado e o backing vocal de "5/4", o trompete e a percussão no final da belíssima "B", o violão delicadamente arranhado e o violoncelo de "Prece Atendida" ou ainda a linha de baixo da parte final de "No Meu Encalço". Enfim, são pequenos grandes momentos que, aliados à já caracterísca intensidade do Jair, me agradaram demais, formando músicas poderosas, na mensagem e no som, sem preciosismos.

As letras continuam com a pungência e a profundidade poética já características. Tratam de temas como desilusão, solidão, relacionamentos, sempre de uma maneira densa e de uma perspectiva pessoal. Desde que o conheci me agradou a maneira como ele mistura tão bem delicadeza e lirismo com uma virulência latente que se insinua em sua voz grave, na métrica "alongada" de versos doloridos. Há urgência e "verdade" no que ele canta. Porém, aqui, perceptivelmente a forma do Jair Naves cantar está mais suave, sua energia está mais dosada e canalizada. Há mais sussurros e menos gritos. Aprofunda essa impresão os muito bem-vindos vocais femininos, inclusive na quarta faixa, "B", em que a Bárbara Eugênia canta.

Devo comentar também que o projeto gráfico do álbum físico está muito bonito, inclusive a capa em que, a despeito do nome do disco, o que atinge o músico são os raios de um dia ensolarado. Haveria aí um jogo intencional entre palavra e imagem?

Sempre me sinto limitado ao tentar comentar sobre música. O fato é que cada acorde me soou relevante, as nove músicas de "Trovões a me atingir" formam um disco agradável, cheio de qualidades e muito maduro, numa instigante evolução em relação ao álbum anterior de um artista que sem dúvida está entre os meus favoritos.