"Pensar no prolongamento das coisas defuntas e no governo dos homens por embalsamamento, restaurar os dogmas em mau estado, tornar a dourar a caixa de relíquias, renovar os claustros, tornar a benzer relicários, reviver as superstições, reabastecer o fanatismo, colocar novos cabos nos sabres e nos aspersórios, reconstituir o monaquismo e o militarismo, crer na salvação da sociedade pela multiplicação dos parasitas, impor o passado ao presente, tudo isso parece estranho. No entanto, há teóricos para essas teorias. Esses teóricos, aliás pessoas de espírito, têm um procedimento bem simples, aplicam ao passado um reboco a que dão o nome de ordem social, direito divino, moral, família, respeito pelos antepassados, autoridade antiga, tradição santa, legitimidade, religião; e vão gritando: 'Vejam! Tomem isso, homens de bem!'. Essa lógica também era conhecida dos antigos. Cobriam de cal uma novilha preta, e diziam: "É branca"."
(HUGO, Victor; Os Miseráveis, p. 557)
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Impressionante como Victor Hugo escreveu essas linhas há mais de 150 anos e se encaixam PERFEITAMENTE na nossa realidade! Em pleno ano de 2015 (não que isso faça muita diferença) vemos crescer de maneira generalizada os brados acalorados pelo militarismo e, se não pelo monaquismo (vida em retiro, totalmente consagrada a Deus no silêncio, na penitência e no trabalho), pelo menos por algum tipo muito peculiar e ferrenho de "religiosidade" que tem na bancada evangélica do congresso nacional a sua mais alta e perigosa representação. Há uma tentativa recorrente e cada vez mais forte de se "impor o passado ao presente". Temos lido sobre isso quase todos os dias nas páginas que cobrem a política e o comportamente e não há nenhuma previsão de melhora.
Ainda mais certeira é a maneira como Victor Hugo analisa o procedimento desses "teóricos", que aplicam ao passado um reboco a que chamam de ORDEM SOCIAL, MORAL, FAMÍLIA, DIREITO DIVINO, exatamente como é feito hoje em dia. Depois vendem esse passado para o indignado "homem de bem", que sedento por "tornar a dourar a caixa de relíquias", atribui os males do mundo ao distanciamento de valores que se perderam. Defendem que "bom era antigamente" e clamam por mais moral, por mais família, por mais direito divino. Pegue qualquer um desses assuntos relevantes e polêmicos da atualidade (homofobia, aborto, tolerância religiosa, maioridade penal, descriminalização das drogas...) e constate que eles estão, afinal, pautados pelos "teóricos das coisas defuntas" através das ideologias citadas acima e de um tempo pra cá isso tem se tornado ainda mais perceptível e preocupante.