“o que interessa em arte não é a sensibilidade, mas o uso que se faz da sensibilidade. Não o poema de uma verdade, mas a verdade de um poema.”
(Ficções do Interlúdio, pág. 273)
Será que o poeta (ou o artista em geral) realmente sente aquilo que expressa?
Aquilo que chega até nós por seus versos é realmente uma verdade, algo que ocorreu ou ocorre? Faz parte de seus sentimentos, da sua experiência?
Até que ponto o poeta é somente um “fingidor”? Até que ponto ele de fato sente o que expressa?
Essa questão surgiu ao acaso (né, Fernanda?) e realmente é bem interessante (ok, não se pautem por mim para definir o que é interessante ou não...).
De acordo com a citação acima (com a qual eu concordo), é secundário se preocupar se determinado assunto ou sentimento faça parte da experiência pessoal do autor. Se ao falar sobre a infância, por exemplo, ele esteja de fato resgatando a sua própria ou imaginando uma. Entra aqui a possibilidade de se criar ficções, algo central para a literatura: Falar a partir de diversos pontos de vista, atuar, inventar diferentes personalidades. Enfim, criar e se recriar.
Algo próximo do que se vê de maneira brilhante e radical em Fernando Pessoa. Seus heterônimos (e o próprio ortônimo) escrevem e apresentam personalidades diferentes, mas são reais, na medida em que suas obras são realidade. Há “verdade” em seus poemas, independentemente de sua existência física ou da veracidade dos dados biográficos de cada um deles. O próprio autor Fernando Pessoa é colocado em pé de igualdade com os heterônimos, na medida em que não se pode definir com precisão se esse é mais ou menos real, enquanto personalidade, que os outros. Ou seja, por mais que o indivíduo Fernando Pessoa histórico seja real, ele mesmo se isenta de colocar a obra assinada enquanto tal como mais verdadeira do que aquela assinada com outros nomes (e fruto de outras "personalidades").
Ainda assim, não acho que o poema perca sua sensibilidade só pelo fato de não ser um testemunho pessoal do autor ou não expressar exatamente sua existência biográfica. O poema é uma “verdade” em si, possui sua própria beleza enquanto obra. Materializa-se, torna-se uma existência em separado de seu criador a partir do momento em que é exteriorizada. O próprio fingir é uma ferramenta importante e que de maneira nenhuma invalida o poema. Escrever sobre uma infância imaginária, inventar o que quer que seja (sobre si mesmo ou terceiros) ainda assim é dar forma a sensibilidade do momento, é ter a capacidade de traduzir aquilo que há na mente de diferentes maneiras.
Por mais distante que supostamente esteja da realidade do poeta, os sentimentos e sensações que vemos emergir de sua obra nunca são de fato exteriores a ele. Para que possa ser objetivado, colocado no papel, aquilo de alguma forma deve fazer parte da mente do autor. Pode-se escolher os temas mais distantes e inesperados, tomar como foco o ponto de vista de personagens totalmente antagônicos; ainda assim o autor nunca vai conseguir escapar da sua experiência enquanto indivíduo. O que quer que ele escreva, que ele invente, não poderá escapar de sua própria subjetividade. Acho que isso é meio óbvio (dizer que só poderá pensar pela sua cabeça, sentir pelos seus sentidos), mas quero enfatizar que fingir/ inventar/ atuar ainda assim é dar forma aos seus próprios sentimentos. E colocar em prática a "pose", dar novos contornos a si mesmo e ao que se pretende passar. Por mais que, ao falar sobre a infância, o autor não fale da sua própria, é de si que surge aquilo que ele escreve, ou caso ele só reproduza uma opinião exterior, ainda assim ela passa pelo seu “filtro”. Tomar contato com as coisas é ter impressões sobre elas. Expressar esse contato é também expressar suas próprias opiniões e sensações. Há sempre algo de pessoal. Ainda mais na poesia, que permite uma liberdade muito maior no uso da linguagem e na expressão da emoção.
Ou não. E que alguém chegue a conclusões melhores por si mesmo...
2 comentários:
Como comentar sobre, se você o fez tão completamente? Leio e releio esse texto e fico, ainda sim, perplexa (sem exagero no uso da palavra, viu?). Esse assunto nos faz divagar tanto, não é? Eu me perco nele, e quase nunca chego a uma conclusão exata (ou eu finjo que não, hein? rs.)
Enfim... sendo fingimento ou não, gosto de “o que interessa em arte não é a sensibilidade, mas o uso que se faz da sensibilidade. Não o poema de uma verdade, mas a verdade de um poema.”
Isso sempre basta, mesmo deixando faíscas de um possível (ou não) fingimento e da tal "pose-poesia"!
Gostei MUITO do texto!
que tal discordar só por esporte mesmo?
sim, como não crer na verdade que pode ser, por si só, um poema (ou qualquer outra forma de expressão da subjetividade humana)? esse algo que vem não sei de onde, transborda e que sensibiliza? enfim, aproxima um pouco mais as ilhas que somos. pessoas, como todas, amputadas e frias...
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