terça-feira, 25 de maio de 2010

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim aolhar para a vida, perdera o sentido da vida.


Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...


O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

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interessante como álvaro de campos se mostra aqui especialmente saudoso, sensibilizado por suas lembranças, lamentando que tenha perdido o que hoje não há (a casa vendida, os que se foram...) e não pode trazer consigo. e a consciência da perda, por si só, já é não poder alcançar...

datas como o meu aniversário me dão (ou já me deram) essa sensação de nostalgia. momento (quase involuntário) de avaliar o que passou e o que está. algumas vezes deixando, no fim das contas, um certo gosto amargo por algo que nem se sabe exatamente o que é (a vida inteira que poderia ter sido e não foi? quem explica?). talvez por isso tenha optado por deixar passar o mais imperceptível, o mais suave possível. esperar pouco, me manter centrado.
e ainda me divirto mais.

2 comentários:

Fernanda Vicente disse...

O que mais me encantou nesse poema foi a amargura presente nele... essa coisa de, não sei se de se lamentar, mas recordar o tempo que se foi e que, claro, não volta mais. Isso é fazer aniversário! (e isso me fez lembrar o que já conversamos sobre a tristeza ter mais o que falar do que a felicidade...)

Adorei a escolha! :)

fernando disse...

ah, mas você já sabia dessa. =]